A Agenda Perdida diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social Rio de Janeiro, setembro de 2002 Apresentação Este documento tem como objetivo apresentar uma agenda de pesquisa e análise sobre as causas estruturais da estagnação econômica e da desigualdade de renda no Brasil, assim como discutir reformas microeconômicas que permitam sua superação nos próximos anos. Sua origem foi uma conversa com o economista José Alexandre Scheinkman, que alguns dias antes aceitara assessorar um dos candidatos à Presidência da República. José Alexandre estava interessado em obter uma sistematização da recente produção acadêmica empírica sobre diversos aspectos da economia brasileira. Ao longo de algumas outras rápidas discussões, decidiu-se convidar um grupo de pesquisadores para se reunir nos dias 6 e 77 deste mês, a fim de sistematizar um diagnóstico dos problemas brasileiros das últimas décadas que tem estado ausente do debate econômico, e detalhar diversas reformas microeconômicas que, no entendimento desse grupo, são necessarias. A não-vinculação poliítico-partidária do documento foi decisiva para a viabilização do projeto. A presença de cada um dos participantes teve como condição a divulgação pública deste texto e, em particular, sua distribuição para os assessores econômicos dos candidatos à Presidência. O grupo reunido incluiu eleitores de quase todos os candidatos, e seu objetivo comum foi contribuir para o atual debate econômico, oferecendo o conjunto de diagnósticos e propostas discutidos neste documento. A diversidade politico-partidária desse grupo de economistas é contrabalançada pela unidade dos métodos de análise e pesquisa sobre os problemas da economia brasileira. A utili- zação de bases de microdados é matéria-prima basica de nossas pesquisas, e a utilização de modelos estatísticos que permitam corroborar ou refutar hipóteses sobre aspectos específicos das diversas variáveis econômicas, nosso instrumento de trabalho. Somos estudiosos das árvo- res, como comentam alguns críticos, e este texto coletivo procura sistematizar nossa produção acadêmica fornecendo ao público nossas interpretações e conclusões sobre a floresta. É claro que são varias as interpretações possíveis sobre o atual cenario econômico, porem o teste empírico das afirmações, ainda que não permita a construção de verdades — tema inatingível nas ciências —, não só torna possível um maior grau de confiança nos diversos argumentos utilizados, como também reduz a possibilidade de diagnósticos e propostas equivocados. Por isso, o esforço de sistematizar parcela relevante das evidências empíricas utilizadas, assim como de indicar as referências dos trabalhos acadêmicos em que baseamos nossas conclusões. Na semana anterior à reunião, todos os participantes me enviaram seus trabalhos acadê- micos, assim como de outros autores que consideravam relevantes para os temas selecionados. Apos uma primeira leitura dessas contribuições, foram delimitados os pontos controversos e as reformas propostas, para serem discutidos durante a reunião. Nos dias que se seguiram a ela, uma versão preliminar do texto foi enviada aos participantes para comentários adicionais. Consenso, entretanto, nem sempre é possível, e não necessariamente todos concordam com todas as conclusões aqui apresentadas. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social Participaram da discussão os seguintes economistas: Affonso Celso Pastore — EPGE/FGV Aloísio Pessoa de Araújo — IMPA e EPGE/FGV André Urani — IE/UFR]J e TET'S Armando Castelar Pinheiro — BNDES José Alexandre Scheinkman — Universidade de Princeton José Marcio Camargo — Departamento de Economia/PUC-RJ Leandro Piquet Carneiro — Ciência Politica/USP Marcos de Barros Lisboa — EPGE/FGV Maria Cristina Pinotti — APC Maria Cristina Trindade Terra — EPGE/FGV Naércio de Aquino Menezes-Filho — FEA/USP Pedro Cavalcanti Ferreira — EPGE/FGV Pedro Olinto — IFPRI Reynaldo Fernandes — FEA/USP Ricardo Paes de Barros — IPEA Rozane Bezerra Siqueira IBRE/FGV Samuel de Abreu Pessõa — EPGE/FGV Além da presença na reunião, Armando Castelar Pinheiro e Samuel Pessôa fizeram diversas decomposições dos determinantes da taxa de crescimento da economia brasileira no último seculo, José Marcio Camargo elaborou as propostas da Justiça do Trabalho, Leandro Piquet Carneiro escreveu a seção-diagnóstico sobre a violência e a primeira metade das sugestões sobre politicas de combate à criminalidade, e Maria Cristina Terra contribuiu para a seção sobre integração com Comércio Mundial. A parte sobre diretrizes da política social foi escrita com base em um conjunto de sugestões elaborado por Ricardo Paes de Barros, a seção sobre politica monetária e cambial fez uso de trabalho de Affonso Celso Pastore e Maria Cristina Pinotti e a seção sobre educação se originou de textos de Naercio Menezes-Filho. Roberto Ellery gentil- mente forneceu seus dados, ainda inéditos, sobre a evolução, nas últimas décadas, dos custos de construção no Brasil, o que nos permitiu uma melhor compreensão do surpreendente aumento do preço do investimento no pais nos anos 1980. O Instituto de Estudos do Trabalho e Sociedade (IET'S) viabilizou a realização da reunião. Ângelo Duarte e Ricardo Pereira me auxiliaram em quase todo o projeto e foram essenciais para a elaboração do texto em tão pouco tempo. Por fim, agradeço a todos os participantes pela generosidade em abrir mão de suas atividades remuneradas e de seu tempo de lazer para participar das discussões que tornaram possivel a existência deste documento. Marcos de Barros Lisboa A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social Sumário Por que a economia brasileira parou de crescer e a desigualdade não diminuiu? 1 Decomposição da taxa de crescimento da economia brasileira no periodo 1930-2000 7 Evolução das taxas de investimento e poupança 9 Infra-estrutura e informalidade 12 Crédito privado e spread bancário no Brasil 13 Desigualdade de renda e pobreza 15 Educação 18 Mercado e Justiça do Trabalho 21 (o o E DR O VR O nO O O O RS) Violência 23 Como retomar o crescimento econômico e diminuir a desigualdade social 1 Reforma tributária e aumenta da oferta de bons empregos 26 2. Integração com o comércio mundial e política industrial 29 3 Políticas de expansão de crédito 33 a) assimetria de informação e spreads bancários b) influência da inadimplência e prazos de empréstimo no spread bancário c) importância do sistema legal no spread bancário d) instabilidade macroeconômica 4 Políticas macroeconômicas, taxa de juros real e risco-Brasil 39 Previdência e gestão do Estado 41 6 Diretrizes para o desenho da uma política social efetiva 44 a) agir diretamente sobre a desigualdade b) políticas estruturais e compensatórias c) enfatizar transferências diretas d) politicas que aumentem a capacidade produtiva dos mais pobres e) políticas sociais e crescimento econômico £) utilização do setor privado para a provisão dos serviços g) descentralização i) unificação do orçamento social da União e coordenação das políticas sociais 7. Políticas de controle da criminalidade 50 O Brasil não cresce ha vinte anos. Comparadas às décadas de 1960 e 1970, as duas últimas decadas se caracterizam pela persistência de um crescimento quase nulo da renda por habitante. Uma invariância ainda mais antiga pode ser observada nos indicadores de desigualdade da distribuição de renda brasileira. Ha trinta anos, esses indicadores são essencialmente os mesmos, com pequena piora nos anos de hiperinflação (fim da década de 1980) e retorna aos niveis da decada de 1970, após o Plano Real. Embora tenham sido propostas e implementadas diversas políticas de gestão macro- econômica nesse período, não há evidências de que a renda por habitante ou a distribuição de renda tenham sofrido qualquer modificação significativa. Regimes de câmbio, politicas de salário minimo e reajustes salariais, tratamento dos credores e regulamentações de crédito, escolhas de política monetária, entre outros, não conseguiram retomar os niveis de crescimento da renda por habitante obtidos em boa parte do seculo XX, nem melhorar a distribuição de renda da população brasileira. Em face da continuidade da ausência de crescimento sustentável e da importância da desigualdade presente na sociedade brasileira, deve-se investigar as raizes estruturais destes problemas que parecem ser insensíveis a políticas de curto prazo. Admitindo que a estabilidade econômica obtida nos últimos anos é fundamental para resolver os problemas de aumento e distribuição de renda, este documento procura apresentar políticas adicionais de carater compensatório e estrutural que contribuam para a retomada do crescimento econômico e para a redução dos níveis de desigualdade social que têm caracterizado o Brasil. Seus objetivos são abordar e analisar fatores explicativos desse quadro e propor alternativas que levem à retomada do crescimento econômico com maior justiça social. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social Por que a economia brasileira parou de crescere a desigualdade não diminuiu? 1 Decomposição da taxa de crescimento da economia brasileira no periodo 1930-2000 O crescimento econômico pode ser decomposto em três partes: a) contribuição do inves- timento em capital físico; b) incremento da quantidade e da qualidade da força de trabalho; e c) aumento da produtividade. Em termos econômicos, a última parte é denominada contri- buição da produtividade total dos fatores (PTF), isto é, o aumento da produção com a mesma quantidade de capital e trabalho, em conseguência da melhora tecnológica e do desenho das regras institucionais. Nos EUA, por exemplo, a PTF tem contribuido com cerca de 1,6% ao ano de aumento da renda per capita desde o fim da Segunda Guerra Mundial. Na decada de 1990, a PTF passou a crescer a uma taxa maior, em função principalmente do aumento do fluxo de novas tecnologias. A Tabela 1 apresenta a decomposição da taxa de crescimento econômico no Brasil desde 1930, tendo sido estimado um intervalo de peso minimo e máximo da contribuição de cada um de seus componentes. Por exemplo, a participação do capital no período 1931-1950 de 1,6% na visão mais pessimista e de 2,7% na mais otimista. Tabela 1 Decomposição do crescimento do PIB nas contribuições de capital, trabalho e produtividade Crescimento Período Produtividade Capital Trabalho total dos fatores (A) + (B) + (C) (A) (B) (C) Fonte: Pinheiro, Gill, Severn e Thomas (2001) e Pinheiro (2001). Nos anos 1930-1980, a contribuição do aumento de produtividade brasileiro foi via de regra pouco superior à americana, porem o grande crescimento da economia brasileira nesse periodo se deveu sobretudo às altas taxas de acumulação de capital físico. Como consequência A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social q desse processo, entre 1950 e 1980, a renda brasileira por habitante passou de 15% para 30% da renda per capita americana (Gráfico 1). Gráfico 1 Renda por habitante Brasil / Renda por habitante Estados Unidos 0,35 0,3 0,25 0,2 0,15 Ddr é > 4 Dad 0,1 1950 1960 1970 1980 1990 2000 ANO Fonte: Heston, Summers e Aten (2001). O crescimento da renda por habitante no Brasil, todavia, não foi muito significativo em comparação com outros países em desenvolvimento. O incremento da renda total foi parcialmente compensado pelo significativo crescimento da população nesse período. De fato, enquanto a renda nacional cresceu 5,77% ao ano entre 1930 e 1980, a população aumentou 2,6%, resultando desses fatores uma elevação da renda por habitante de 3% ao ano. Além disso, a escolaridade da força de trabalho, como veremos, cresceu de forma significativamente inferior aquela verificada nas demais nações em desenvolvimento. Nos paises do leste asiático, os três fatores — produtividade, acumulação de capital físico e aumento seja da quantidade, seja da qualidade da força de trabalho — contribuiram de forma significativa para o crescimento da renda. Na Coréia, a renda por habitante, que era pouco mais da metade da renda por habitante brasileira em 1960, chega a dois terços em 1970 e se iguala a ela na primeira metade da década de 1980 (Gráfico 2). Gráfico 2 Renda por habitante Coréia / Renda por habitante Brasil 2,50 2,00 1,50 1,00 0,50 1955 1965 1975 1985 1995 Fonte: Heston, Summers e Aten (2001). A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 8 A partir de então, a economia coreana mantém sua taxa histórica de crescimento da renda por habitante, enquanto a economia brasileira entra em um periodo de relativa estagnação, com crescimento do produto por habitante menor que o observado na economia americana e significativamente inferior ao encontrado na economia coreana. No periodo 1981-1993, a PTF brasileira teve crescimento infimo ou negativo (-0,7 a 0,65% ao ano), com pequena queda da contribuição do trabalho e redução significativa da acu- mulação de capital. A partir de 1994, retoma-se o crescimento da produtividade, em níveis superiores aos observados nos anos 1930-1980. Nesse periodo, contudo, o significativo aumento da produtividade da economia brasileira é compensado pelos baixos indices de contribuição tanto da força de trabalho quanto da acumulação de capital. 2 Evolução das taxas de investimento e poupança A Tabela 2 mostra que, no Brasil, a taxa de investimento medida a preços correntes é relativamente estável desde 1964, apesar da volatilidade da taxa de crescimento econômico observada nesse periodo e da redução significativa da taxa de crescimento da renda nacional a partir de 1980. O custo relativo do investimento, entretanto, aumenta significativamente no periodo 1980-2000, permanecendo pelo menos 30% acima do valor médio observado no periodo 1964-1980 e reduzindo a taxa de investimento medida a preços constantes em cerca de quatro pontos percentuais. Tabela 2 Investimento e Poupança no Brasil, 1930-2000 Período Taxa as Poupança (% PIB) (% PIB) Custo Relativo do Investimento| Externa Nacional Preços | Preços de Romentes 208 (1980=100) Total| Pública | Privada 1931-50 11,6 11,8 103,4 1951-63 15,4 19,1 81,3 1,4 14,1 2,5 11,5 1964-80 19,8 21,7 91,2 2,4 17,5 3,6 13,9 1981-93 21,2 17,0 125,3 1,1 20,0 -1,5* 21,5% 1994-00 19,7 16,5 119,3 3,3 16,4 -5,4 21,8 Fonte: Pinheiro, Gill, Severn e Thomas (2001), exceto os números marcados com *, que foram calculados utilizando-se o conceito operacional de déficit público. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 9 Esse aumento do custo relativo do investimento no Brasil está relacionado ao aumento do custo da construção, que corresponde a cerca de 60% do investimento anual (Gráficos 3 e 4). Os gastos com maquinas e equipamentos equivalem a pouco mais de 30%. A partir de meados dos anos 1980, observa-se um aumento do preço relativo da construção, que quase chega a dobrar no periodo 1984-1989. Na decada de 1990, o valor das construções mostra uma tendência de queda. No fim desse periodo, todavia, seu preço ainda € significativamente superior aquele observado nos anos 1970. Gráfico 3 Participação da construção na formação bruta de capital 80% 70% 60% 50% 40% 30% 20% 10% 0% 1970 1972 1974 1976 1978 1980 1982 1984 1986 1988 1990 1992 194 196 1998 2000 Gráfico 4 Evolução do preço relativo das construções 141 ução — Preço Relativo Constr 0.7 6 1970 1975 1980 1985 1990 1995 2000 A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 10 Em comparação com outros paises em desenvolvimento, como México, Chile e Coreia, a taxa de investimento no Brasil medida a preços correntes é baixa (Gráfico 5). Enquanto nesses países a atual taxa de investimento oscila entre 24 e 29% da renda nacional, no Brasil ela, desde 1930, não ultrapassou 20% da renda. Gráfico 5 Taxa de investimento 1996-2000 Argentina Brasil Chile Mexico Coreia Fonte: Banco Mundial. A evidência empírica de diversos países em desenvolvimento indica que, para uma taxa de crescimento da renda nacional de 5% ao ano, seria necessário que a taxa de investimento brasileira passasse de 20% para cerca de 25% da renda nacional. A taxa brasileira, entretanto, não apenas é relativamente baixa, como também possui parte significativa financiada pela poupança externa (3 a 4% da renda nacional). No Brasil, a experiência recente demonstra que a dependência da poupança externa é fonte de instabilidade e que todo aumento da taxa de investimento deve ser financiado pelo incremento da poupança domestica. Nas últimas décadas, a grande modificação do perfil da poupança brasileira foi a oscilação da poupança pública, que era de 2,5% entre 1951 e 1963, 3,6% entre 1964 e 1980, e se tornou negativa: menos 1,5% entre 1981 e 1993 e menos 5,4% entre 1994 e 2000. A partir de 1980, a queda da poupança do setor público é compensada pelo aumento da poupança privada, que passa de 20% para 21,5% da renda nacional. Em 1994, inicia-se uma redução significativa da poupança pública e um aumento das poupanças pública e externa. A economia brasileira, em resumo, tem se caracterizado por taxas históricas de poupança menores que a média dos paises que têm tido sucesso em suas estratégias de desenvolvimento e por uma redução significativa da poupança pública nas últimas duas décadas, parcialmente compensada por um aumento da poupança doméstica. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 11 3 Infra-estrutura e informalidade O aumento do custo real do investimento e a dificuldade em manter os atuais níveis de poupança externa indicam a necessidade tanto de recuperar a poupança pública, hoje negativa, quanto de elevar a poupança doméstica para os padrões observados nos demais paises em desenvolvimento, a fim de que se torne possível, ao menos, recuperar a taxa histórica de investimento da economia brasileira medida a preços constantes. A redução da capacidade de investimento público influi na taxa de crescimento da oferta de infra-estrutura, como se pode ver na Tabela 3. Com a exceção significativa do setor de telecomunicações, privatizado na década de 1990, observa-se queda da expansão da infra- estrutura em quase todos os outros setores a partir dos anos 1980. Tabela 3 Expansão da infra-estrutura (crescimento em capital físico, quilômetros ou megawats/hora) 1964-80 11,2 CC O O O 1994-00 Fonte: Pinheiro (2002) Em comparação com paises com renda por habitante semelhante à sua, o Brasil possui, mesmo se descontados os gastos com os juros da divida pública, uma das maiores participações do setor público na renda nacional. Os gastos públicos no Brasil apresentam uma tendência histórica de aumento e representam hoje cerca de 38% da renda nacional. Nos anos 1980, parte desse aumento foi financiado pelo imposto inflacionário. Nos anos 1990, o imposto inflacionário foi substituído por impostos indiretos, entre eles impostos sobre o faturamento, como o PIS, o Cofins e a CPMF. Ao passo que o elevado imposto inflacionário dos anos 1980, como veremos adiante, agravou a desigualdade de renda no Brasil, a atual forma de finan- ciamento dos gastos públicos conduz à informalidade, em particular nas relações trabalhistas. Vejamos por quê. Em alguns setores, como o comércio de bens não duraveis e a construção civil, a margem de lucro sobre o faturamento oscila entre 3% e 20%. Nesses casos, impostos sobre o fatura- mento de aproximadamente 3% a 4%, como o Cofins e o PIS, podem influenciar significa- tivamente a lucratividade das firmas e favorecer o aumento da sonegação e das relações de trabalho informais. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 12 Como a probabilidade de fiscalização aumenta com o tamanho das firmas, a atual forma de cobrança da carga tributária incide mais significativamente sobre a lucratividade das firmas maiores. As firmas menores, em contrapartida, muitas vezes não conseguem explorar os ganhos de produtividade decorrentes da escala de produção e apresentam perda de eficiência econômica. Como sera discutido, é possivel preservar a carga tributária brasileira e diminuir a distorção que privilegia as firmas pequenas que operam à margem da lei, incentivando a formalização do mercado de trabalho, com ganhos para o sistema previdenciário. 4 Crédito privado e spread bancário no Brasil A baixa taxa de investimento brasileira como fração da renda nacional em comparação com os demais países desenvolvidos e em desenvolvimento coexiste com taxas de juros elevadas e poucas operações de credito de longo prazo no mercado de crédito privado. Tradicio- nalmente, a ausência de operações de crédito privadas com taxas de juros equivalentes às praticadas nos países desenvolvidos tem sido atribuida ao estágio de desenvolvimento brasileiro e justificado a intervenção do Estado no provimento e no credito, sobretudo de longo prazo. Como mostra o Gráfico 6, o Brasil apresenta uma das menores participações do volume de crédito privado na renda nacional entre os paises em desenvolvimento: 25% do PIB, que corresponde a menos da metade do observado no Chile e a menos de um terço do verificado na Coréia. Gráfico 6 Crédito ao setor privado em paises selecionados (1998) Brasil Chile Corea Israel Canada EUA Alemanha Fonte: FMI A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 13 O reduzido volume de crédito privado no Brasil coexiste com elevadas taxas de juros. São exemplos a taxa basica das operações do Banco Central — taxa SELIC — e também as operações privadas de credito e a diferença entre a taxa de captação dos depositantes e a taxa cobrada dos tomadores de emprestimo (spread bancário). O alto spread bancário é um dos responsaveis pelo reduzido nível de investimento na economia brasileira. Seus determinantes são de ordem microeconômica e seus principais componentes são os seguintes: a cunha fiscal (impostos e tributos cobrados sobre as operações financeiras), o custo administrativo, a provisão para cobrir a inadimplência e o lucro da inter- mediação financeira. Na Tabela 4, são apresentados a taxa SELIC e os diferenciais de juros cobrados em diversas operações de crédito em dezembro de 2001. Tabela 4 Magnitude do diferencial de taxa de juros (% ao ano dezembro de 2001) Pessoa física Cheque especial Pessoa jurídica Taxa geral 51,1% aa 140,1% aa 24,4% aa 39,9% aa A Tabela 5, parte de um estudo do Banco Central com dados de agosto de 2001, mostra a decomposição do spread bancário em seus componentes. É importante compreender o que significam esses valores, pois no cômputo geral de todas as modalidades de empréstimos as perdas por inadimplência do sistema bancário representaram 15,8% da receita de juros efetivamente pagos acima da taxa SELIC. Tabela 5 Decomposição do spread bancário Inadimplência Despesas Impostos Impostos Margem Total administrativas indiretos diretos do banco 15,80% 19,20% 8,20% 35,70% 100,00% A margem dos bancos, calculada em 35,7% do spread bancário, inclui a remuneração do capital do banco, seu lucro puro, e sobretudo o prêmio de risco recebido. Por sua vez, a Tabela 6, extraida do relatório Juros e Spread Bancário, publicado pelo Banco Central em dezembro de 2000, indica que, em algumas modalidades de empréstimo à pessoa física, os atrasos chegam a representar 10% do volume de crédito concedido. É interessante comparar aqui os atrasos de mais de noventa dias nas modalidades de crédito para compra de veiculos com créditos para a compra de outros bens. Como se pode notar, a inadimplência é A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 14 muito menor no caso dos veículos, pois nesta modalidade a alienação fiduciária assegura aquele que concede o credito a retomada do bem. Diante da possibilidade real de perda do bem, o tomador evita ao máximo permanecer inadimplente. Dito de outro moda, a baixa inadimplência nos empréstimos para financiamento de veiculos explica o baixo spread bancário nesse segmento de operações de credito. Tabela 6 Niveis de atraso das operações de crédito prefixadas (em %) Modalidade de crédito Acima de 90 dias Total Pessoa jurídica Conta garantida - pré Capital de giro Aquisição de bens Desconto de duplicatas Pessoa física Cheque especial Crédito pessoal Aquisição de bens — veículos Aquisição de bens - outros O mercado de crédito privado no Brasil, portanto, caracteriza-se não apenas pelos reduzidos volumes de crédito concedido, como também pelas altas taxas de juros cobradas nas diversas modalidades de credito e pelo elevado spread bancário. Esse último tem como consequência reduzir simultaneamente os volumes de recursos disponíveis para aplicações em poupança e a demanda por recursos para investimentos, contribuindo para explicar a pequena taxa de investimento observada na economia brasileira nas últimas décadas. 5 Desigualdade de renda e pobreza O diagnóstico da estabilidade da desigualdade de renda no Brasil está bem documentado na literatura econômica recente (cf., por exemplo, Barros, Henriques & Mendonça 2000). Ao longo das duas últimas décadas, o grau de desigualdade de renda no Brasil, um dos maiores do mundo, permaneceu essencialmente inalterado, com os 10% mais ricos da população se apropriando de 50% dos recursos nacionais, e os 50% mais pobres, de apenas 10% desse total (Tabela 7). A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 15 Tabela 7 Evolução temporal dos indicadores de desigualdade de renda Razão entre a renda média | Razão entre a renda média Ano | Coeficiente de gini | Índice de theil| dos 20% mais ricos e a dos | dos 10% mais ricos e a dos 20% mais pobres 40% mais pobres Fonte: Barros, Henriques e Mendonça (2000). Notas: Os indices de Gini e Theil medem o grau de desigualdade na distribuição de renda. A distribuição utilizada foi a de domicílios segundo a renda domiciliar per capita. O conceito de pobreza possui diversas dimensões. Uma delas, importante e mensurável, refere-se à renda familiar dividida pelo número de membros da familia (renda familiar per capita). Pode-se então calcular, em cada período e por area de habitação, a renda per capita necessaria para que uma família satisfaça suas necessidades básicas de moradia, vestuário e alimentação (linha de pobreza), e verificar não só o número de familias que possuem renda abaixo deste valor, como também que renda, em média, é necessária para que essas familias ultrapassem a linha de pobreza (hiato de renda). É possível ainda calcular a renda necessária para que uma familia satisfaça apenas suas necessidades de alimentação (linha de indigência). A Tabela 8 a seguir apresenta a evolução da linha de pobreza e indigência no Brasil nas últimas décadas. Vê-se que o número de pobres e no Brasil permanece essencialmente constante entre 1977 e 1993, excetuando-se o ano de 1986, Plano Cruzado, com redução de aproximadamente 20% a partir do Plano Real. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 16 Tabela 8 Evolução temporal da indigência e da pobreza no Brasil” Co Tndigêncdia Pobreza Percentual Hiato Número de Percentual Hiato Número de Ano de médio da indigentes de médio da pobres indigentes renda (em milhões) pobres renda (em milhões) 1977 17,0 6,1 17,4 39,6 17,2 40,7 1978 21,8 10,2 23,2 42,6 21,0 45,2 1979 23,9 11,6 26,0 38,8 16,9 42,0 1981 18,8 7d. 221 43,2 19,5 50,7 1982 19,4 7,4 23,4 43,2 19,8 52,0 1983 25,0 9,8 30,7 51,1 24,5 62,8 1984 23,6 8,8 29,8 50,5 23,5 63,6 1985 19,3 7,1 25,1 43,6 19,7 56,9 1986 9,8 3,4 13,1 28,2 11,3 37,6 1987 18,5 Lisa 25,1 40,9 18,7 55,4 1988 224 91 30,6 45,3 21,8 62,6 1989 20,7 8,5 29,3 42,9 20,6 60,7 1990 21,4 8,8 30,8 43,8 21,1 63,2 1992 19,3 8,6 27 40,8 19,7 57,3 1993 19,5 8,5 27,8 41,7 19,8 59,4 1995 14,6 6,0 21,6 33,9 15,3 50,2 1996 15,0 6,6 22,4 33,5 15,6 50,1 1997 14,8 6,3 22.9 33,9 15,4 51,5 1998 14,1 6,0 21,7 32,8 14,7 50,3 1999 14,5 6,1 22,6 34,1 15,4 53,1 Fonte: Barros, Henriques e Mendonça (2000). “As linhas de indigência e pobreza foram as da região metropolitana de São Paulo. A falta de efetividade da politica social brasileira não advem da falta de recursos — a cada ano o pais investe ao menos R$ 150 bilhões nessa area — nem da ausência de programas modernos e inovadores. A maior parte desses recursos, entretanto, não beneficia os mais pobres, que recebem menos de “4 do total. A analise controlada da distribuição da renda do trabalho indica que cerca de 40% da desigualdade de renda do trabalho observada no Brasil nas últimas décadas se correlaciona com a desigualdade do grau de escolaridade (Menezes Filho 2001). No que se refere aos rendimentos totais, a educação se correlaciona com cerca de 26% da desigualdade de renda. Segundo as estimativas de Langoni (1970), enquanto as taxas de retorno do investimento em capital físico oscilavam entre 4%, indústria têxtil, e 22%, indústria de mineração, as taxas de retorno do investimento em capital humano variavam entre 32%, ensino primario, e 12%, ensino superior. Estimativas recentes indicam que o retorno à educação ainda continua bastante elevado (Menezes-Filho 2001). A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 17 'g 'g prop Pp Jose Contudo, apesar dos elevados retornos do investimento em educação, a taxa de escola- ridade média brasileira ainda é extremamente baixa, mesmo em comparação com paises com renda por habitante inferior à brasileira, como se vera na próxima seção. Além disso, o reduzido investimento em capital humano no Brasil é concomitante à elevada participação de crianças e adolescentes no mercado de trabalho. Na faixa etária entre 14 e 15 anos, por exemplo, cerca de 25% dos jovens trabalham. Ja na faixa entre 10 e 14 anos, a percentagem de crianças economicamente ativas, segundo dados da PNAD, oscilou, na década de 1990, de 15 a 25% (Kassouf 2001). 6 Educação A evidência empírica internacional indica que a escolaridade tem influência não apenas no salário de mercado do trabalhador, como também na renda nacional. Segundo dados interna- cionais, cada ano a mais de escolaridade aumenta o salário em 9%, sendo o ganho maior para os niveis de escolaridade mais baixos (Psacharopoulos 1994). No caso do Brasil, considerado o histórico de baixos índices de escolaridade, essa influência chega a 12% (Menezes-Filho 2001). Além disso, evidências recentes indicam que a influência social da escolaridade equivale à influência privada sobre o salário (Krueger & Lindahl, 2000). Dessa forma, caso a participação dos salários na renda seja de 2/3, cada ano a mais de escolaridade eleva a renda do pais em 6%. Hã evidências, porém, de que, no Brasil, a decisão de se educar é bem mais distorcida que a decisão de acumular capital físico, e de que isso tem impactos significativos na renda nacional (Ferreira e Pessõa 2002). Ate a década passada a evolução da educação no Brasil em comparação com os demais países do mundo, sobretudo os países em desenvolvimento, foi decepcionante. As Figuras 1 e 2 ilustram isso, ao mostrar a evolução da média de anos de estudo ao longo das gerações em alguns paises. Nos Estados Unidos, essa média é de 12 anos na geração de 1930. Nas novas gerações, aumentou de 12 para 14 anos. Paises como Corcia e Taiwan têm escolaridade média pouco menor que seis anos de estudo entre os nascidos em 1930, porém evoluiram rapidamente (aumento de mais de seis anos de estudo em quatro gerações), atingindo, para a geração nascida em 1970, padrão próximo ao dos Estados Unidos. Na América Latina, a evolução do nível educacional, em média, foi bem mais lenta. Entre a geração nascida em 1930 e aquela nascida em 1970, a escolaridade media aumentou em torno de cinco anos. Embora o Brasil tenha evoluído a uma taxa bastante próxima da média da América Latina, o nível educacional dos brasileiros permaneceu inferior ao de seus parceiros regionais. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 18 Figura 1 Evolução educacional entre países MeBrasil Média da AL. Coréa DTaiwan DEUA Ano de Nascimento Fonte: Behrman et al (1999). A Figura 2 evidencia o fraco desempenho educacional. Na Argentina, a geração de 1930 apresenta uma média próxima de oito anos de estudo e, no Chile, próxima de cinco anos. Entre os nascidos em 1970, a média dos dois países se encontra em torno de 11 anos de estudo, o que os deixa próximos de Coreia e Taiwan. O caso do México também é interessante, pois a transição educacional foi bastante rápida, partindo de uma situação próxima à brasileira na geração nascida em 1930 para uma média em torno de dez anos de estudo para a geração nascida em 1970. O desempenho brasileiro, por sua vez, esta próximo de paises com grandes problemas políticos e econômicos, como El Salvador e Nicarágua. Na geração de 1970, por exemplo, vê-se que o Brasil foi ultrapassado por El Salvador. Figura 2 Evolução educacional na América Latina e Caribe Nicarágua DIEl Salvador DBrasil México Chile DArgentina| Ano de Nascimento Fonte: Behrman et al (1999). A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 19 A literatura indica que o fraco desempenho educacional no Brasil decorreu da dificuldade em manter as crianças e os jovens na escola, sobretudo os de familias de menor renda. A Figura 3, reproduzida a partir de Filmer & Prichett (1998), descreve, para diferentes paises, a proporção de jovens pobres que conseguem terminar o ensino fundamental, desde que tenham completado ao menos a primeira série. Pode-se observar que a situação educacional dos pobres no Brasil era a pior entre todos os países selecionados em meados dos anos 1990, inclusive paises africanos como Ruanda, Tanzânia, Camarões e Uganda, os quatro com pro- blemas de instabilidade política. Quando verificamos apenas aqueles que concluem a primeira série, os brasileiros pobres estão entre os primeiros colocados, juntamente com Zimbabwe, Turquia, Colômbia e República Dominicana. Figura 3 Jovens (15 a 19 anos) pobres que concluíram o ensino fundamental 100 80 50 % 40 20 0 E q [o] E 5 = s = v pu) E DR O DO DO DD O: E É ZE 8 5 Ê E E [8] Es N Desde o fim dos anos 1980, os indicadores de educação, sobretudo entre os jovens, apre- sentaram redução significativa dos indices de evasão escolar no ensino fundamental e médio. O Gráfico '7 a seguir mostra a evolução do grau de desigualdade de educação para os jovens com 13 anos de idade em diversas gerações. O indicador construido é análogo ao índice de Gini utilizado na análise da desigualdade de renda: quanto mais próximo de 1, mais desigual o nivel de escolaridade entre os individuos da geração examinada; quanto mais próximo de 0, menos desigual. No gráfico, a linha reta indica a tendência de redução do grau de desigualdade segundo a permanência da tendência observada entre 1988 e 1994. Como se pode notar, o nivel observado em 1999 é cerca de 20% inferior ao que teria sido observado, caso não tivesse melhorado o nível de escolaridade dos jovens que nasceram a partir de 1982. Deve-se enfatizar, ainda, que a adoção de politicas sociais agressivas de educação pode resultar em um aumento temporário da desigualdade de renda, em decorrência do choque de gerações. As gerações mais velhas, com menos educação, terão suas rendas relativas reduzidas em relação às novas gerações, mais educadas e com salários maiores. No curto prazo, portanto, o A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 20 sucesso de uma politica social agressiva de educação pode significar, se consideradas todas as gerações que coexistem no mercado de trabalho, o aumento da desigualdade de renda. No médio prazo, tendo as gerações mais velhas saido do mercado de trabalho, a desigualdade de renda tende a cair. Gráfico 7 Evolução da desigualdade de educação aos 13 anos de idade 0,350 0,300 0,250 0,200 1988 1989 1990 1991 1992 1993 1994 1995 1996 1997 1998 1999 Não ha nada a fazer no que se refere à conjunção aumento da educação e diminuição da desigualdade de renda no curto prazo: as evidências empíricas indicam que educar os mais velhos tem muito pouca influência sobre seus salários reais, ao passo que a melhora da educação dos mais jovens faz com que seus salários aumentem em relação aos dos mais velhos e, portanto, concorram para o crescimento da desigualdade de renda. Deve-se enfatizar, entretanto, que a educação dos mais velhos tem externalidades significativas, sobretudo no que se refere à capacidade de aprendizagem das crianças, além de influência significativa sobre a participação social, como sera discutido na seção sobre diretrizes para uma política social. 7 Mercado e Justiça do Trabalho O desenho institucional do mercado de trabalho brasileiro apresenta diversas especi- ficidades. Os direitos dos trabalhadores inscritos na Constituição e na CLT não são negociáveis pelos trabalhadores nos contratos coletivos de trabalho, porém, como será visto, são perfeitamente negociáveis na Justiça do Trabalho, diante de um advogado e de um Juiz. A qualquer momento da relação de trabalho, o trabalhador ou o empregador podem recorrer à Justiça do Trabalho para fazer valer seus direitos, contudo, ao longo da relação de trabalho, dificilmente um trabalhador o faz, em razão do receio de ser demitido, assim que o fizer. Nor- malmente, os trabalhadores recorrem à Justiça apenas apos terem sido demitidos ou pedido demissão. Note-se ainda que, no caso brasileiro, todos os direitos podem ser avaliados monetariamente, não cabendo qualquer demanda quanto à readmissão. Em primeira instância, trabalhador e empregador são convocados a comparecer a uma Comissão de Conciliação e Julgamento. O Juiz do trabalho ali presente, tão logo inicia a A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 21 'g g prop Pp Just audiência, propõe um acordo entre as partes. Cabe ao empregador fazer uma proposta ao trabalhador, e se o fizer, o trabalhador pode ou não aceitá-la. Caso não haja acordo, o Juiz recolhe o processo para análise, e profere sentença assim que chega a uma conclusão quanto à legitimidade do pedido do trabalhador. Em média, um processo na Justiça do Trabalho dura de três e quatro anos, dependendo do estado do pais em que esta correndo. Se o empregador recorre da sentença do Juiz de primeira instância ao Tribunal Regional do Trabalho, serão necessarios cerca de quatro anos mais, em média, para a sentença final. Em outras palavras, caso não ocorra acordo em primeira instância, o trabalhador pode ter de esperar até oito anos para receber o que lhe é devido. Nessas condições, 80% dos processos são resolvidos em primeira instância e os trabalhadores recebem, em média, 40% do que demandam. Varios aspectos desse mecanismo devem ser considerados. Em primeiro lugar, ao contrário do que se imagina, os trabalhadores negociam seus direitos legais. A negociação se da na Justiça do Trabalho e, em geral, após a relação de trabalho ter sido rompida. Nesse sentido, os contratos de trabalho no Brasil são inteiramente passíveis de negociação a posteri- ori. Segundo, quanto mais importante for para o trabalhador a renda obtida no processo de negociação, maior sera o desconto a ser obtido pelo empregador nesse processo. Terceiro, a melhor estratégia para o empregador seria não pagar os direitos trabalhistas ao longo da relação de trabalho, deixando para fazê-lo apenas quando o trabalhador os demandasse na Justiça, apos ser demitido. O empregador ganha tempo e paga apenas uma parte do que deve. Por fim, o trabalhador tem todos os incentivos para recorrer sempre à Justiça do Trabalho e para maximizar o valor de sua demanda, independentemente de o empregador ter pago ou não seus direitos, já que o custo de fazê-lo se resume ao tempo que tem de dedicar à audiência em primeira instância. De forma análoga, para a maioria dos empregados que ganham em torno de um salário minimo, não ha benefício em contribuir para a Previdência. Duas razões podem ser destacadas para esse comportamento típico. A primeira é que a universalização da seguridade social implementada pela Constituição de 1988 não distingue aqueles que contribuem para a Previdência daqueles que são atendidos sem ter contribuido para seus serviços. A segunda é o fato de que os contribuintes que ganham em torno de um salário minimo mudam varias vezes de emprego e, em geral, demoram muito ou não conseguem obter a aposentadoria por tempo de contribuição. Quando demitidos, não raro permanecem bom tempo desempregados ou no setor informal, interrompendo sua contribuição previdenciária. Como todos podem se aposentar com um salário minimo ao alcançar uma determinada idade, dificilmente o trabalhador que ganha em torno de um salário vê vantagens em contribuir regularmente para receber a aposentadoria por tempo de contribuição em um prazo mais curto. Além disso, o trabalhador, em caso de demissão, pode demandar à Justiça do Trabalho o que julga ter direito. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 22 Em suma, o desenho institucional do mercado de trabalho gera grandes incentivos à informalidade e à rotatividade, pois tanto trabalhadores quanto empregadores, ao se tornarem informais, não pagam os impostos sobre a folha de salários que pagariam se a relação de trabalho fosse formal. Dessa forma, existe benefícios para que esses agentes privados dividam entre si, sob a forma de aumento de salário e redução de custo, o valor dos impostos, o que promove a sonegação. Ademais, como os trabalhadores precisam ser demitidos para receber parte de seus direitos, cria-se um estimulo para que eles busquem ser demitidos quando a economia está em expansão, assim que a dívida se acumula (cf. Barros, Corseuil & Foguel 2001). é Violência A violência urbana tem sido continuamente identificada como um dos principais problemas públicos na maioria dos paises da América Latina. Embora sejam grandes as diferenças entre os países da região, principalmente no que diz respeito ao momento em que ela aumenta, constatamos que, no Brasil, o periodo crítico ocorreu na segunda metade da década de 1980. Ainda que as políticas de redução da criminalidade sejam principalmente de competência dos estados da Federação, é evidente a importância do Executivo Federal nessa area. Não obstante a clareza do arranjo federativo brasileiro que da autonomia aos estados, cabe ao Executivo, em primeiro lugar, o papel de agente articulador, secundariamente a participação nas atividades de repressão ao crime, por meio da Policia Federal e de outras agências encarregadas da fiscalização de portos, aeroportos e rodovias, e ainda a influência na arena legislativa, na qual pode contribuir para a reforma da legislação criminal. Os instrumentos de coordenação à disposição do governo federal são, no entanto, precários e não há perspectiva de que tais mecanismos sejam construídos sem grande esforço legislativo, viável apenas no médio ou longo prazo. Em outras palavras, com os recursos institucionais de que dispõe no momento, o governo federal pode propor leis mais duras para quem comete roubo com uma arma de fogo, mas não alterar a probabilidade de que criminosos sejam presos após cometer delitos, o que depende essencialmente das estratégias locais de poli- ciamento. Embora sejam observados esforços importantes dedicados à implementação de políticas de prevenção da violência nos planos federal e estadual, deve-se reconhecer que as iniciativas nesse sentido, tanto do Executivo quanto do Legislativo e do Judiciário, utilizam de forma precária os dados, informações e analises relevantes ja disponiveis. Uma evidência da magnitude do problema da violência nas cidades brasileiras pode ser observada na Tabela 9. Cidades das regiões metropolitanas do Rio de Janeiro e de São Paulo figuram entre as mais violentas da América Latina. Em 1997, Diadema e Belford Roxo tiveram A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 23 taxas de homicídios por cem mil habitantes tão elevadas quanto cidades de paises que recen- temente passaram (El Salvador e Guatemala) ou ainda enfrentam (Colômbia) situações de conflito militar interno com grupos políticos organizados. Tabela 9 Taxa de homicídios por cem mil habitantes em cidades da América Latina Cidade País Ano Taxa de homicídios Medellin Colômbia 1995 248,0 Calí Colômbia 1995 112,0 Ciudad Guatemala Guatemala 1996 101,5 San Salvador El Salvador 1995 95,4 Caracas Venezuela 1995 76,0 1995 25,0 Lima Peru Ciudad de México México 1995 19,6 Santiago Chile 1995 8,0 Buenos Aires Argentina 1998 6,4 Fontes: no Brasil, Sistema de Informação da Mortalidade; na Argentina, Division Nacional de Política Criminal, Ministério de la Justicia; no Chile, Cruz (1999); nos demais países, Buvinic & Morrison (1999). Entre 1979 e 1998, houve crescimento de 35% da taxa de homicídios por grupos de cem mil habitantes na região metropolitana do Rio de Janeiro e de 103% na região metropolitana de São Paulo, tendo, no mesmo periodo, a população do Rio de Janeiro crescido 9%, e a de São Paulo, 25%. Os dados disponíveis indicam ainda que essas regiões metropolitanas não apresentam a mesma tendência longitudinal em suas taxas de homicídio. No Rio de Janeiro, o periodo crítico de crescimento dessa taxa ocorreu entre 1983 e 1994. Na primeira metade da década de 1980, era 41,8 por cem mil, passando 11 anos depois para 78,1, ou seja, um crescimento de 88%. Em São Paulo, o periodo de crescimento mais acentuado foi a década de 1990. Entre 1992 e 1998, a taxa cresceu 46%, passando de 43 para 63 por cem mil. A magnitude desse problema pode ser avaliada ainda levando-se em conta os anos perdidos em decorrência de mortes prematuras. Como indica a Tabela 10, o homicídio é a principal causa de mortalidade para os homens no Rio de Janeiro, com uma redução de 3,4 anos na expectativa de vida ao nascer. Outro aspecto importante sobre a criminalidade, estudado em Andrade e Lisboa (2000), refere-se à influência das variáveis econômicas sobre a taxa de homicídio dos jovens e, consequentemente, sobre a violência ao longo das gerações. Piores condições no mercado de A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 24 trabalho entre os mais jovens, assim como aumento combinado da renda média das regiões com indicadores de desigualdade parecem ter impacto positivo sobre a taxa de homicídio desse grupo etário. Uma possivel explicação para esse fenômeno é o fato de que a fração dos jovens que entra na criminalidade se correlaciona tanto com o comportamento do mercado de trabalho quanto com os indicadores de renda e desigualdade média de cada região. Jovens envolvidos na criminalidade, no entanto, apresentam maior probabilidade de serem assassi- nados na juventude. Dessa forma, desigualdade de renda em comunidades ricas combinadas com um fraco desempenho do mercado de trabalho para os jovens aumenta a fração desse grupo que entra na criminalidade e, portanto, sua taxa de homicídios. Mais importante, uma vez que uma geração começa com taxa de homicídio maior, essa taxa permanece elevada ao longo de todo o seu ciclo de vida, perpetuando seus efeitos negativos por vários anos (inércia geracional do homicídio) Tabela 10 Anos de vida perdidos por causa de mortalidade (homens, Rio de Janeiro, 1995) Fonte: Andrade e Lisboa (2001). Por fim, informações disponíveis sobre crimes contra o patrimônio indicam outras dimensões importantes do problema da violência. Apenas no municipio do Rio de Janeiro, no ano de 1995, foram registrados 33 mil casos de roubo à mão armada e 16 mil furtos de veiculos, o que corresponde, respectivamente, a taxas de 584 e 276 por cem mil habitantes. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 25 'g 'g prop Pp Just Como retomar o crescimento econômico e diminuir a desigualdade social 1 Reforma tributária e aumento da oferta de bons empregos Como visto na seção sobre mercado e Justiça do Trabalho, segundo as leis em vigor, os contratos trabalhistas são renegociaveis a posteriori, o que incentiva a informalidade e aumenta a possibilidade de evasão de outros impostos. Note-se agora que o problema não é a existência de negociação, mas sim o locus e o momento em que ocorre. A negociação deve existir e ser incentivada. Deveria ocorrer, contudo, ao longo da relação de trabalho e não após ela ter terminado. A proposta, portanto, é deslocar a negociação da Justiça do Trabalho, onde ocorre depois que a relação de trabalho acabou, para as empresas e os sindicatos de trabalhadores, enquanto a relação de trabalho estã em andamento. Cria-se com isso maior espaço de nego- ciação para os sindicatos, aumentando tanto seu potencial de organização quanto sua capacidade de fiscalização e mobilização. Em outras palavras, os sindicatos brasileiros são fracos porque não têm o que negociar. Além disso, a negociação levaria em consideração as condições da empresa, da economia e do mercado de trabalho, e não apenas a capacidade dos trabalhadores de esperar pelo pagamento da dívida. Essa proposta significa transformar, por meio da negociação coletiva, os direitos indi- viduais dos trabalhadores em direitos coletivos, o que implica o fortalecimento dos sindicatos. Para que isso ocorra, é fundamental a eliminação do imposto e do monopólio sindical, o que criaria concorrência entre diferentes sindicatos da mesma categoria, valorizaria a afiliação e tornaria a organização sindical mais responsável perante sua clientela. Por fim, para evitar que toda negociação acabe na Justiça do Trabalho e impeça a negociação coletiva, é importante tirar o poder da Justiça do Trabalho de dirimir conflitos entre as partes. Os conflitos devem ser resolvidos por meio de negociações entre sindicatos e empresas, cabendo à justiça trabalhista apenas desfazer dúvidas quanto ao cumprimento dos contratos de trabalho. Dito de outra forma, é fundamental retirar o poder normativo da Justiça do Trabalho e eliminar a possibilidade de que uma das partes recorra a ela unilateralmente em casos de conflito. Em seu lugar, deveriam ser criados sistemas de mediação e arbitragem, tanto públicos quanto privados, a fim de facilitar a resolução das questões surgidas entre empregadores, trabalhadores e sindicatos. A carga tributária no Brasil é igual à de paises com renda por habitante muito maior que a sua, como os Estados Unidos, e bastante superior à de países com o mesmo nível de desen- volvimento. Além disso, a estrutura tributária brasileira € ineficiente e pouco progressiva no que diz respeito à distribuição de renda. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 26 O incentivo à informalidade é uma das consequências mais importantes da forma como a tributação esta estruturada no Brasil. Os tributos sobre a folha salarial, por exemplo, perfazem 15% da arrecadação (R$ 60 bilhões). Esse número demonstra o peso desses tributos e explica em parte as vantagens atribuidas à sonegação tanto pelos empregadores quanto pelos empregados. É verdade que se pode imaginar que um aumento da fiscalização diminuiria a sonegação e incrementaria a arrecadação, porém nas relações trabalhistas muitas vezes as duas partes, empregador e empregado, compartilham a percepção de que a sonegação lhes é vantajosa. Uma das maneiras possíveis de diminuir as distorções causadas em relação aos incentivos à formalização e à poupança é substituir progressivamente os impostos indiretos sobre bens, serviços e trabalho (ICMS, IPI, ISS, COFINS etc.) por um imposto sobre o valor adicionado (IVA), sendo preservada a cobrança do imposto de renda. É importante frisar que propostas como essa pretendem substituir a forma de cobrança, e não reduzir o valor atualmente arrecadado pela tributação. Mesmo assim, pode-se argumentar que um imposto sobre o valor adicionado, ao incidir sobre o consumo, não favorece a progressividade da tributação, uma vez que as pessoas mais pobres gastam, proporcionalmente, parcelas maiores de sua renda no que consomem. À pre- servação e mesmo o aumento da progressividade tributaria, contudo, podem ser obtidos por meio tanto de um sistema de créditos fiscais para os mais pobres quanto de uma realocação dos atuais gastos do governo com os mais ricos para os mais pobres. No momento, ha incerteza sobre a aliquota necessária para que um imposto sobre valor agregado não leve a uma perda de receita. Uma das estimativas ja feitas (Siqueira 2002) indica que, para eliminar os tributos indiretos, a aliquota uniforme de IVA deve ser de aproxima- damente 26%. Essa aliquota aumentaria com a desoneração da contribuição previdenciária ou com a isenção de algumas categorias de bens e serviços, como alugucis. A recente proposta de transformação do PIS em um imposto sobre o valor adicionado gerara maior previsibilidade sobre a ocorrência ou não de mudanças na receita tributária. Não ha, contudo, necessidade de esperar os resultados dessa modificação para iniciar o processo de alteração da estrutura tributária brasileira, uma vez que a substituição dos impostos indiretos por impostos sobre o valor agregado deve ser feita de forma progressiva, permitindo eventuais ajustes marginais e retirando os incentivos à informalidade hoje existentes, que reduzem a eficiência produtiva de diversos setores econômicos. De fato, como indica um recente relatório da McKinsey (2002), o setor formal é duas vezes mais produtivo que o informal. A baixa produtividade da economia informal é explicada tanto pelo seu não-acesso ao mercado de crédito quanto pela baixa escala de sua produção. A baixa escala decorre, em parte, da própria informalidade, uma vez que firmas maiores têm maiores probabilidades de serem fiscalizadas por terem se tornado mais visíveis para as A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 27 autoridades tributárias. Além disso, a própria ineficiência causada pela informalidade impede que as firmas menores cresçam e ganhem escala, realimentando o processo de ineficiência- informalidade. Um importante incentivo para a redução da informalidade pode ser obtido por meio de políticas dirigidas aos trabalhadores com menores salários. Poder-se-ia, por exemplo, isenta- los da contribuição previdenciária, que hoje é de 8%. A isenção para todos os trabalhadores da contribuição de 8% sobre o primeiro salário minimo ganho totalizaria menos de R$ 5,3 bilhões, que corresponderiam a uma taxa adicional de IVA de cerca de 1%, desde que não houvesse qualquer isenção a produtos especificos. Esse número, aliás, poderia ser menor em caso de não-beneficio para os trabalhadores de maior renda. O aumento da formalização leva tambem à melhora da qualidade dos empregos. Relações formais tendem a ser mais estáveis, permitindo a redução da rotatividade da mão-de-obra, sobretudo em decorrência da redução dos incentivos distorcivos hoje existentes. Relações estáveis permitem às firmas o investimento em capital humano específico e o consequente aumento de sua produtividade. Esse ponto é particularmente importante, pois, após mais de um século de pouca atenção ao sistema educacional, o Estado brasileiro, na decada passada, começou a aumentar a educação de seus jovens, sobretudo os mais pobres. Com isso, a oferta de trabalhadores educados tem se aproximado daquela de paises com nivel de renda semelhante ao brasileiro. Para realizar seu potencial, as novas levas de trabalhadores precisam encontrar uma oferta de empregos que aproveite sua educação, isto é, precisam trabalhar para firmas que utilizem novos formatos de produção e dêem a seus funcionários treinamento que permita elevar sua produtividade. Nas últimas décadas, foram criados muitos empregos no setor informal, caracterizados por baixos salários, processos de produção distantes da fronteira tecnológica e alta rotatividade. Se essa tendência não for revertida, haverá muitos jovens educados e poucas perspectivas de trabalho adequadas à sua formação. A informalidade também pode gerar custos sociais adi- cionais em razão de seu possivel impacto sobre o nível de criminalidade, sobretudo no que se refere aos direitos de propriedade, aos direitos autorais e ao comércio de bens adquiridos ou produzidos ilegalmente, incluindo-se aqui a aquisição de bens roubados ou produzidos sem autorização legal, como no caso da indústria fonográfica. O Brasil dispõe de uma classe empresarial dotada de espirito empreendedor, entretanto o alto custo da formalização leva boa parte desse talento para a informalidade. Há necessidade, portanto, de políticas que não incentivem as vantagens que a informalidade usufrui em compa- ração com o setor formal. É preciso, em particular, diminuir o custo de abrir firmas formais. Além disso, como fração consideravel das novas firmas não sobrevive ao seu primeiro ano de vida, é importante diminuir também o custo de fechá-las. No caso da cidade do Rio de Ja- neiro, por exemplo, o prazo normal hoje é de trinta a 45 dias para abri-las, e de aproxima- damente seis meses para fecha-las. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 28 Assim, as principais sugestões para reforma tributária são estas: a) substituir progressivamente os impostos indiretos por um imposto de valor agregado. b)no curto prazo, substituir também a contribuição previdenciária do trabalhador para o primeiro salário minimo por um imposto sobre valor agregado, permitindo não so um incremento real da renda, como também um aumento do emprego formal para os trabalhadores de baixa renda. c) no longo prazo, estender essa substituição a todas as contribuições dos trabalhadores e à folha salarial, reduzindo os incentivos à informalidade. O imposto sobre valor agregado poderia então ter tarifas diferentes, a fim de reduzir a carga tributaria dos grupos de baixa renda. d) criar um sistema de credito por contribuição fiscal para os trabalhadores de baixa renda formais. Esse sistema de credito não so induz à formalização, como também permite maior progressividade do sistema tributario (Siqueira 2002). e) diminuir os custos e o tempo de abrir e fechar firmas. E para o mercado de trabalho: a) deslocar a negociação da Justiça do Trabalho para as empresas e os sindicatos de trabalhadores. b)retirar o poder da Justiça do Trabalho de dirimir conflitos entre as partes, a quem caberia apenas dirimir dúvidas quanto ao cumprimento dos contratos de trabalho. Para a resolução de conflitos seriam criados sistemas de mediação e arbitragem, pública e privada, para facilitar a resolução de conflitos. 2 Integração com comércio mundial e politica industrial O Brasil é um pais com muito pouca abertura para o resto do mundo. Exporta e importa a metade do que um país com renda nacional semelhante à sua deveria. O volume de comércio do Brasil é de um terço do Chile e do México e menos de um quarto da Coreia. Além disso, o volume de comércio do Brasil é relativamente estável nas últimas décadas, ao passo que esses paises verificaram um notável aumento do seu volume de comércio (Gráfico 8). Obviamente, a baixa taxa de comércio do Brasil decorre parcialmente do protecionismo das economias avançadas em relação a produtos nos quais o pais tem vantagens comparativas claras, mas também de politicas de substituição de importações adotadas na segunda metade do século XX. Ao menos desde os anos 1950, a economia brasileira tem atravessado crises recorrentes no balanço de pagamentos que motivaram a adoção de políticas de restrição às importações, entre elas elevação de tarifas, restrições quantitativas a bens especificos e taxas múltiplas de câmbio. Foram também implementadas políticas de incentivo à produção A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 29 Gráfico 8 Volume de comércio como fração da renda nacional (em paridade do poder de compra) 80 60 40 1950 1960 1970 1980 1990 2000 —s Brasil —m-—Chile México 1950 1960 1970 1980 1990 2000 —e Brasil USA —e— ltalia —e— Coréia Fonte: Heston, Summers e Aten (2001). doméstica, sobretudo oferta de crédito público e de insumos básicos e infra-estrutura a taxas de juros e preços subsidiados. / . E verdade que a adoção da politica de substituição de importações encontra suporte teórico na literatura sobre indústria nascente e vantagens comparativas dinâmicas. Indústrias novas F . r . - . em paises em desenvolvimento podem ter custos médios de produção superiores ao de firmas A . A . ja em funcionamento em outros países. Esses custos maiores podem decorrer tanto de falhas no mercado de crédito quanto de restrições de escala em decorrência do estágio de desen- volvimento do pais ou de distorções na apropriação dos benefícios sociais gerados pelas novas indústrias. Nesses casos, o apoio público pode ser essencial ao desenvolvimento da indústria, com influência positiva sobre a taxa de crescimento econômico. ' Diversas possibilidades teóricas de falhas de mercado que justifiquem políticas industriais específicas não têm, no entanto, encontrado suporte nas evidências empíricas. Ver, por exemplo, Glaser, Kallal, Scheinkman & Sheifer (1992). Além disso, mudanças ocorridas nas últimas décadas, como a diminuição dos custos de transporte e alterações na escala ótima das firmas, parecem ter reduzido a importância dessas falhas de mercado. Ver também Rauch (1993). A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 30 As politicas de substituição de importações, no entanto, não estão isentas de custos sociais. Em primeiro lugar, a escassez de recursos implica que o financiamento de certos setores reduz a disponibilidade de recursos para outras atividades, seja no financiamento, seja no provimento de bens e serviços públicos ou transferências de renda para grupos especificos. Em segundo, a adoção de politicas de proteção por meio de tarifas, cotas ou taxas múltiplas de câmbio implica, ao menos no curto prazo, o aumento dos preços domésticos dos setores beneficiados, causando a diminuição da renda real dos consumidores. No caso de setores intermediários, a adoção de proteção tarifária é negativa para os setores posteriores da cadeia produtiva. De fato, os últimos setores têm de comprar os insumos produzidos pelos setores protegidos, via de regra mais caros ou menos eficientes que os disponíveis no mercado externo, afetando suas vantagens comparativas dinâmicas. Os setores que utilizam insumos protegidos podem, portanto, perder eficiência e competitividade, tal como ocorrido no caso dos incentivos à indústria de informática no Brasil. Em contrapartida, a experiência brasileira recente ilustra como o acesso a bens de capital e equipamentos mais eficientes produzidos externamente pode ter influência positiva na produ- tividade da indústria. Um exame do comportamento de 1.700 firmas brasileiras no período 1988-1999 demonstrou que a redução das tarifas de importação de insumos mais eficientes foi a principal responsável pelo aumento da produtividade dessas firmas (Lisboa, Menezes- Filho & Schoor 2002).? A adoção de politicas de substituição de importações requer a verificação da existência de falhas mercado que inviabilizem a implantação da indústria no curto prazo. Além disso, deve- se garantir que, implementadas as políticas, a indústria se torne competitiva e possa se desen- volver sem medidas protecionistas adicionais e permanentes. É necessário, portanto, verificar que as políticas de substituição especificas tenham justificativa e garantam a viabilidade da indústria no longo prazo, impedindo a transferência de recursos públicos para setores especificos sem a ocorrência de beneficios sociais. O tamanho do déficit comercial de um setor particular de forma alguma é um critério adequado para a adoção de politicas industriais. Osrecursos públicos necessários a cada política especifica devem, portanto, ser comparados com outras destinações possiveis. Dito de outro modo, €é preciso avaliar se os possiveis bene- fícios derivados das politicas de substituição adotadas compensam os recursos públicos utili- zados e a perda de renda real dos consumidores, em função da elevação dos preços da produção doméstica. ? Outro estudo recente (Gonzaga, Menezes-Filho & Terra 2002) mostra que a liberalização comercial beneficiou os trabalhadores não qualificados. Essa diminuição da remuneração relativa do trabalho qualificado teve efeito positivo para a diminuição da desigualdade no pais. Em outras palavras, a redistribuição de renda entre fatores provocada pela abertura comercial contribuiu para que, ao longo da década de 1990, as altas taxas de desigualdade de renda, dado o baixo crescimento do produto, não aumentassem ainda mais. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 31 Além disso, as justificativas microeconômicas para a adoção eventual de politicas de substituição de importação não devem ser confundidas com o argumento macroeconômico de ajuste do déficit em conta corrente. O déficit em conta corrente é a contrapartida da diferença entre absorção e produção domésticas. Em particular, aumentos na produtividade setorial podem alterar o saldo comercial de setores econômicos especificos. O déficit em contas correntes, entretanto, permanece inalterado caso não ocorram alterações nos agregados macroeconômicos, sobretudo em um regime de taxa de câmbio flutuante. Como esperado, as atuais dificuldades do balanço de pagamentos brasileiro alimentam criticas dos que consideram excessivo o processo de abertura vivido pelo Brasil durante a decada de 1990. Esses críticos, contudo, parecem ignorar a pequena participação das expor- tações e das importações na economia brasileira. Na realidade, o Brasil precisa de políticas que aumentem sua participação no comércio internacional, o que lhe permitiria explorar suas vantagens comparativas e economias de escala e aumentar o fluxo de novas tecnologias. Nas economias modernas, a tecnologia flui principalmente por meio de exportações e importações. No que se refere às exportações, uma firma muitas vezes aprende com seu importador novas técnicas ou padrões de produção. Nas importações, por sua vez, não raro novas tecnologias migram em novos equipamentos ou bens de capital. Um aspecto importante da política pública é o incentivo à ciência e tecnologia. Uma economia com sólida base nessas áreas gera empregos que aproveitam a educação do trabalhador, assim como trabalhadores educados esperam se beneficiar do treinamento interno às próprias firmas, feito apenas quando estas acreditam que as relações de trabalho serão duradouras. À estrutura de pesquisa e tecnologia, portanto, afeta a produtividade e as futuras vantagens comparativas. À indústria de software nos Estados Unidos, por exemplo, beneficiou- se do apoio à pesquisa nas universidades e laboratórios nacionais e do subsídio à construção das primeiras redes de internet. No Brasil, a EMBRAPA desenvolve inovações que aumentam a produtividade da agricultura. Como o apoio à produção de ciência e tecnologia nas universidades leva à formação de um corpo técnico e científico essencial para a adoção de novas tecnologias na indústria, justificam-se políticas de apoio em função não só do comércio, como também, e principalmente, da necessidade de aumentar a produtividade. Ademais, políticas que aumentem simultaneamente importações e exportações reduzem a dependência em relação aos fluxos de capital externos. Maior participação do comércio exterior na renda nacional permite maiores ajustes das contas correntes com menor depre- ciação do câmbio real, tal como demonstrado pelas experiências recentes do México e de vários paises do Sudeste asiático. Uma politica de comércio e de apoio a indústria bem-sucedida terá como consequência o aumento da produtividade e também das exportações e importações. Deve, portanto, englobar: A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 32 a) o favorecimento de políticas que levem a um aumento do volume de exportações e importações. b) um processo de negociação que não privilegie nenhum bloco econômico e leve a concessões reais das economias mais avançadas. Nessas negociações, é preciso levar em conta que os interesses dos grupos econômicos em outros paises, assim como no Brasil, não são homogêneos. Enquanto os produtores de automóveis nos Estados Unidos estão interessados na baixa das tarifas sobre o aço, os produtores dessa matéria-prima querem o oposto. c) a revisão de tarifas de importação com vistas a avaliar sua influência nos custos de produção. d) uma política de ciência e tecnologia que defina áreas de prioridade em função de nosso potencial científico e sua importância na economia e na sociedade. Uma vez escolhida as áreas de prioridade, os fundos devem ser atribuídos de forma competitiva a centros de excelência e utilizar critérios de merito cientifico. Além disso, é importante buscar complementaridade entre pesquisa cientifica e ensino nas universidades, assim como facilitar os fluxos do conhecimento entre os centros de pesquisa e a indústria. e) uma reforma tributária que de fato permita a isenção de impostos indiretos nos produtos exportados. f) uma organização de estratégias de exportação que considere as definições de padrões de metrologia e qualidade. Ha, hoje, dispersão das políticas relacionadas às exportações em diversos órgãos governamentais, sem efetiva coordenação das politicas e dos instru- mentos utilizados. 3 Politicas de expansão do crédito Entender as razões para o baixo volume de credito e para as elevadas taxas de juros cobradas no Brasil é um dos desafios para a retomada e para a ampliação das taxas de investimento e, portanto, para o crescimento sustentável de longo prazo. a) assimetria de informações e spreads bancários Uma das principais dificuldades da atividade bancaria é a identificação do risco de inadimplência associado aos tomadores de recursos. Contratos de dívida podem não ser honrados, seja porque os tomadores foram afetados por razões inesperadas, seja porque investiram em atividades arriscadas ou utilizaram mal os recursos recebidos. Os bancos possuem informações parciais sobre as caracteristicas dos tomadores de empréstimos e são capazes de distinguir apenas imperfeitamente os bons dos maus pagadores. Por isso, as taxas de juros cobradas incluem um valor adicional, denominado prêmio de risco, que procura considerar as chances de determinado grupo de tomadores não honrar suas dividas. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 33 Tipicamente, a taxa de juros cobrada para um empréstimo depende das oportunidades de investimento disponíveis ao investidor e do risco de que o devedor honre sua dívida no prazo pactuado. O spread bancário, portanto, é a diferença entre a taxa de juros paga ao poupador e aquela cobrada do tomador, constituindo-se na remuneração do serviço de intermediação. Quanto menor o risco de não pagamento dos creditos inferido, menor o prêmio cobrado na taxa de juros. Garantias criveis e de rapida execução em caso de inadimplência diminuem o prêmio de risco, que tende a se aproximar do prêmio cobrado do governo federal. Quanto mais incerta ou longa for a execução da garantia, maior será o prêmio de risco cobrado. No caso do mercado imobiliário americano, por exemplo, no qual ha rápida retomada do imóvel hipotecado em caso de não pagamento por três meses, a diferença entre a taxa de juros paga pelo governo federal americano e a paga por um tomador de empréstimo está em torno de dois pontos percentuais em empréstimos de longo prazo. A existência de garantias rapidamente executáveis depende, no entanto, do desenho jurídico em vigor. No caso do sistema imobiliario brasileiro, ate bem pouco tempo havia diversas restrições legais à retomada do imóvel em caso de não pagamento das dívidas, ocasionando a manutenção das altas taxas de juros cobradas. Recentemente, foi introduzida no Brasil a alienação fiduciária para imóveis, o que pode vir a reduzir a taxa de juros para hipotecas, porém essa nova modalidade de crédito ainda não foi testada juridicamente. b) influência da inadimplência e prazos de empréstimo no spread bancário Como vimos, existem em princípio diversas razões para que o spread bancário seja distinto nas várias modalidades de crédito e mesmo entre agentes tomadores de empréstimos para a mesma atividade. Emprestimos vinculados a garantias de execução mais fácil estão presumi- velmente associados a spreads bancários menores. A estrutura fiscal brasileira leva a um comportamento peculiar do spread bancario. Alguns custos fiscais, como a CPMF, incidem sobre o montante da operação realizada, e não sobre o valor do serviço gerado, tendo consequências importantes sobre o spread bancário que depende dos prazos do crédito concedido ou obtido. A incidência de taxação sobre operações financeiras tem, portanto, efeitos importantes sobre o spread bancário. Quanto menor for o prazo da operação financeira, mantidas as demais condições, maior será o spread, ou seja, maior será a diferença entre a taxa de juros de captação de recursos e a taxa de juros de empréstimo. Boa parte desse spread é utilizada para pagar a cunha fiscal que depende do montante da operação, e não da renda gerada. Como operações mais curtas geram menos renda para montantes semelhantes, a cunha fiscal em relação à renda gerada aumenta. A Tabela 11 simula o impacto do prazo do empréstimo e da taxa de inadimplência sobre o spread bancário, a partir de uma planilha de custo de operações de crédito para um banco típico, segundo a legislação existente em dezembro de 2000 no que se refere às obrigações A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 34 fiscais e ao recolhimento de compulsórios por parte dos bancos. Para simplificar a análise, supomos que a taxa de lucro da atividade bancária seja igual a zero. Todo o spread existente, portanto, deve-se apenas ao provimento para inadimplência, à cunha fiscal e aos demais custos de intermediação financeira. Tabela 11 Simulação do spread bancário Inadimplência semanal quinzenal mensal 1% 97% 60% 30% 5% 540% 330% 140% 10% 1160% 710% 292% Em um empréstimo mensal, o tomador paga um spread de 30% caso a taxa de inadimplência seja de 1% dos empréstimos concedidos. Nos empréstimos semanais, essa diferença sobe para quase 100%. Para taxa de inadimplência de 5%, os valores chegam a 140% no caso de empréstimos mensais, e a 540% nos semanais. Ao analisar os determinantes do spread bancário no Brasil, deve-se incorporar, assim, não apenas o risco de inadimplência, como também o prazo médio do empréstimo concedido. Como indica a simulação feita pela Tabela 11, empréstimos com mesmo risco de inadimplência e prazos menores estão tipicamente associados a spreads significativamente maiores. c) a influência do sistema legal no spread bancário A inadimplência é motivada tanto pela incapacidade de pagamento, resultante do insucesso do investimento e de movimentos desfavoráveis na economia, quanto, em alguns casos, pela falta de disposição do devedor em pagar. Nesses casos, o oportunismo do devedor advem parcialmente dos incentivos fornecidos pelo sistema jurídico brasileiro ao não-pagamento (ordenamento jurídico e Poder Judiciário). A morosidade da Justiça é o mais evidente desses incentivos. No Brasil, uma ação de reconhecimento de divida leva de cinco a sete anos, e uma ação de execução chega a se prolongar por outros tantos. Esse tempo demasiado tem os seguintes efeitos sobre a relação entre credores e devedores: a) os devedores não vêem a cobrança judicial como uma forma crível de recuperação do crédito, incentivando-os a recusar qualquer tipo de negociação extrajudicial. b) os devedores usam a Justiça como forma de postergar seus pagamentos e não para fazer valer seus direitos (ver Tabela 12). c) durante o prolongado processo judicial de cobrança, a garantia, que permanece sob a posse do devedor, tem seu valor depreciado. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 35 'g g prop Pp Just Tabela 12 Perguntou-se aos magistrados: “Afirma-se que muitas pessoas, empresas e grupos de interesse recorrem à E ado sao : fas Eds Justiça não para reclamar seus direitos, mas para explorar a morosidade do Judiciário. Na sua opinião, em que tipos de causa essa prática é mais frequente?”. frequente | frequente | frequente | quase nunca) sabe | respondeu Tr | Comercial/Economia em geral us las las | sa [a | ci inquilino [2 [308 [24 | 80 | n7 | 69 | Diretos doconsumidor [86 [ 15 [355 | 215 | 134 | 57 | EE sa 2 Propriedade imelecual Fonte: Pinheiro (2001) ibutária ) ; 58 ; Õ édi , , 8 , | | F . . 2 Hã diversos aspectos do sistema jurídico e legal que contribuem para a morosidade da cobrança judicial, entre os quais destacam-se a necessidade de mover ações distintas para o reconhecimento do débito e para sua execução, e a admissão, pelo Código de Processo Civil, de recursos legais que, na prática, servem para procrastinar a conclusão do processo. A “politização” do judiciário e a divergência de interpretação entre os magistrados a respeito de alguns aspectos da lei, entre os quais a legalidade da utilização de taxas de juros compostas (anatocismo) são outros fatores relevantes que impedem a expansão do mercado de crédito no Brasil. Esse último ponto é crucial porque a taxa de juros composta é utilizada na remu- neração dos poupadores tanto na caderneta de poupança quanto nos fundos de investimento, entre outros. Remuneração com base em taxa de juros simples implica que aplicações de longo prazo terão remunerações menores que aplicações de curto prazo, favorecendo essas últimas em detrimento do alongamento dos prazos de aplicação. O exemplo a seguir ilustra esse ponto. Suponhamos que a taxa de juros por um ano seja de 10% e que um poupador resolva aplicar R$ 100,00 durante um ano, recebendo ao fim desse periodo R$ 110,00. Caso resolva reaplicar esses recursos por mais um ano, ao fim desse segundo ano, recebera R$ 121,00. Ao A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 36 aplicar por um ano e reaplicar o total pelo mesmo periodo de tempo, obtém R$ 21,00 de juros, o que significa uma taxa de juros de 21% por dois anos. Se a remuneração do empréstimo por dois anos fosse calculada com base em uma taxa de juros simples (10%+10%=20%), o mesmo poupador receberia um real a menos de juros. Provavelmente, o poupador preferirá uma aplicação de apenas um ano, ao fim da qual podera reaplicar os recursos. Dessa forma, o aplicador dificilmente investira por prazos longos, ocorrendo o mesmo com as instituições financeiras. A proibição de cobrança de juros compostos tem como consequência, portanto, a redução dos empréstimos para operações de longo prazo. Evidências recentes levam a crer que a qualidade do Poder Judiciário é tão importante quanto a renda per capita na determinação da razão volume de crédito /PIB entre os estados brasileiros. Estados com judiciário mais eficiente têm maior volume de operações de crédito a taxa de juros menores (Pinheiro 2002). A politização da Justiça, ao contrário, manifesta-se muitas vezes na tendência de alguns magistrados em proteger grupos considerados a parte mais fraca nas disputas levadas aos tribunais, de tal modo que, levados a optar entre o respeito aos contratos, independentemente de sua repercussão social, e sentenças que, violando os contratos, buscam justiça social, escolhem a segunda alternativa. Pesquisa realizada por Pinheiro (2001) mostrou que 73% dos juizes escolheriam a segunda alternativa. A dificuldade em executar as garantias e a impossibilidade de prosseguir a ação de execução do principal concomitantemente à discussão sobre a taxa de juros utilizada contribuem para a elevação do spread praticado no mercado de credito. É importante enfatizar que isso atinge de maneira indistinta os credores, independentemente de seu histórico e do risco que apre- sentam, denotando que aqueles que emprestam têm dificuldade em selecionar os devedores menos arriscados e lhes oferecer contratos mais vantajosos (taxas de juros menores e prazos maiores). Por fim, deve-se lembrar a necessidade de reformular a lei de falência. Em primeiro lugar, a incerteza sobre o passivo trabalhista e fiscal das firmas leva à dúvida por parte dos credores sobre a possibilidade de reaver seus créditos em casos de não pagamento. Mais agilidade nas cobranças fiscais e trabalhistas podem reduzir essa incerteza. Em segundo, o prazo usualmente longo do processo de falência implica, na melhor das hipóteses, o recebimento dos créditos concedidos em valores depreciados. Em terceiro, o não-controle dos ativos de firmas em processo de concordata pelos credores aumenta a possibilidade de risco moral. Firmas em dificuldades financeiras, sobretudo durante processos de concordata, podem utilizar praticas predatórias de concorrência, criando dificuldades financeiras para seus concorrentes. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 37 d) Instabilidade macroeconômica Apesar da estabilidade da taxa de inflação nos últimos anos, diversas variáveis macro- econômicas ainda apresentam grande volatilidade, como a taxa de câmbio e as taxas de juros de médio e longo prazos. O Gráfico 9 a seguir apresenta a flutuação dos juros longos sobre os curtos nos últimos três anos. Note-se que esse prêmio oscila, em menos de um ano, entre 8% e —1% ao ano. Gráfico 9 Prêmios dos juros longos sobre os curtos 10 Swap 360-SELIC 999 2000 2001 2002 Fonte: Pastore e Pinotti (2002). Como mostram Pastore e Pinotti (2002), essa oscilação do prêmio ocorre mesmo em títulos sem risco cambial, refletindo o risco de crédito no Brasil. A instabilidade das taxas de câmbio e juros aumenta a incerteza sobre a decisão de investir e reduz a demanda por crédito, sobretudo de longo prazo. Dessa forma, um aspecto importante da politica econômica em relação ao crédito é buscar mecanismos que reduzam a volatilidade dessas taxas, procurando estender a conquista da estabilidade às demais variáveis macroeconômicas. Considerando os pontos analisados, sugerimos: a) incentivar os esforços de aperfeiçoamento das centrais de informação de crédito, tais como Serasa e Central de Risco do Banco Central, permitindo que os tomadores de empréstimos sejam distingúidos por seus históricos positivo e negativo. b) agilizar a cobrança de passivos trabalhista e fiscal, a fim de reduzir a incerteza sobre o valor das firmas. c) implementar uma reforma da Lei de Falências e Concordatas que, nessas situações, permita o controle das firmas pelos credores e evite a adoção de práticas predatórias. d) forçar o Superior Tribunal Federal a estabelecer jurisprudência quanto à legalidade do anatocismo e da utilização da alienação fiduciária para bens imóveis. e) reformar o Código de Processo Civil, de forma que a execução do principal seja desvinculada de questões sobre o calculo e a aplicação dos juros, e que o julgamento das operações com garantia tenha prioridade. Além disso, as ações de reconhecimento de divida e de execução devem ser unificadas no mesmo procedimento jurídico, e os processos iniciados à revelia, ter sua conti- nuidade garantida do ponto em que estiverem nos casos de comparecimento da outra parte. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 38 4 Politicas macroeconômicas, taxa de juros real e risco-Brasil Se existe uma relação entre as políticas macroeconômicas e o crescimento de longo prazo que pode ser inferido do comportamento da economia brasileira nas últimas duas décadas, ela decorre da volatilidade das principais variáveis agregadas — sobretudo taxa de inflação, taxa de câmbio e taxa de juros — e do reduzido crescimento da renda por habitante. A vola- tilidade observada dessas variáveis aumenta a incerteza sobre o comportamento futuro de variáveis essenciais às decisões de investimento e reduz a propensão a investimentos de longo prazo. Dessa forma, a estabilidade é uma conquista importante para a retomada do crescimento econômico. Esta seção discute o comportamento da politica monetária nos últimos anos e sua relação com o risco-Brasil e com os indicadores fiscais do governo brasileiro. A taxa de juros paga pelo Estado, que historicamente cumpre seus compromissos de divida, é a menor taxa de juros do mercado, pois seu risco de crédito e, portanto, o prêmio de risco cobrado são os mais baixos da economia. De forma sintética, o governo federal recebe receitas como se fosse sócio de todas as atividades econômicas da sociedade. Mesmo que todas as atividades apresentem flutuações em suas receitas, essas flutuações não estão inteiramente correlacionadas, permitindo a maior estabilidade dos recursos públicos. No caso brasileiro, entretanto, a taxa de juros paga pelo governo federal não apenas é elevada em relação aquela paga pela maioria dos governos federais, como também even- tualmente superior à cobrada de alguns agentes privados. Em parte, a elevada taxa de juros dos titulos da dívida pública reflete a incerteza dos poupadores a respeito da capacidade do governo federal em honrar suas dívidas nos prazos pactuados. Essa incerteza decorre do histórico do governo federal, que nas últimas duas décadas tanto prorrogou unilateralmente o prazo de pagamento dos titulos públicos (Plano Collor) quanto suspendeu temporariamente o pagamento de parte da divida (moratória externa no Governo José Sarney) e fixou a taxa de correção monetária em cerca de metade da inflação observada (Governo Figueiredo). A taxa real de juros depende dos regimes cambial e monetário. No regime de câmbio fixo, ela absorve todos os choques externos, tendendo a ser significativamente maior que no regime de câmbio flexivel. Nesse sentido, a adesão ao câmbio flutuante seria a grande respon- savel pela queda dos juros reais a partir de 1999. A liberdade cambial, no entanto, requer nova âncora que estabilize os preços, a qual só pode ser obtida por um Banco Central que tenha como principal objetivo a estabilidade econômica. Hã, segundo varias opiniões, interação entre a taxa real de juros e o risco-pais. O reco- nhecimento de que juros reais mais elevados condicionam o crescimento da relação divida / PIB e impõem um esforço maior sobre a política fiscal conduz à proposição de que o risco- pais se eleva sempre que o Banco Central eleva a taxa de juros. Dessa forma, o excesso de conservadorismo da autoridade monetária o levaria a praticar juros reais desnecessariamente elevados, expandindo a relação divida /PIB e favorecendo o crescimento do risco-pais. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 39 No entanto, como mostram Pastore e Pinotti (2002), não ha qualquer evidência empírica de que a taxa SELIC, nominal ou real, cause aumento do risco-Brasil, e, portanto, de que o risco-Brasil seja causado por políticas monetárias excessivamente conservadoras. O elevado nivel do risco-Brasil se deve antes à fragilidade do ajuste fiscal e a um triste histórico de políticas fiscais expansionistas e de descumprimento de contratos. A curta experiência das restrições legais à indisciplina fiscal (Lei de Responsabilidade Fiscal) pesa contra a reputação da política econômica atualmente em implantação. O crescimento da credibilidade obtida com uma politica fiscal responsável, que garanta a solvência do governo e se fundamente em regras e procedimentos institucionais é o fator que, em última analise, pode levar à queda permanente da taxa de juros e do risco-pais. A taxa de juros relevante para o crescimento econômico é a taxa de juros de longo prazo. Como a flutuação da taxa de juros (longa) depende das variações do risco-pais, é preciso analisar o que explica essas variações (Pastore & Pinotti 2002). Ao longo do tempo, ele se altera em razão de choques externos, porém um pais, por ter fundamentos econômicos piores, pode, em determinado momento, sofrer efeitos mais fortes. O México, por exemplo, sofreu menos, ou mesmo passou ao largo da crise argentina, em razão da melhora de seus fundamentos domésticos. Chegamos, assim, à reação do Banco Central. Quando as autoridades monetárias estão diante de um pais com fundamentos ainda frágeis e há choque externo, os poupadores exigem um prêmio de risco. Quando isso ocorre, o Banco Central tem como única alternativa elevar a taxa SELIC para evitar que a expansão monetária resultante do diferencial entre as taxas de juros de curto e longo prazo conduza à inflação aberta. Em outras palavras, as relações de causalidade que podem ser lógica e empiricamente estabelecidas são estas: a) os riscos têm sido autonomamente causados pelos choques externos, dado que a qualidade da política econômica domestica não se alterou; b) a elevação dos riscos percebidos conduz ao crescimento das taxas de juros formadas livremente no mercado (swaps e taxas dos titulos brasileiros no exterior); c) a taxa SELIC tem de se ajustar e, em geral, o faz com intensidade menor que a dos choques e das correspondentes alterações das taxas de juros livremente formadas no mercado. No caso brasileiro recente, choques externos têm sua influência desnecessariamente amplificada pela composição da divida pública, cuja parcela significativa esta indexada às flutuações do câmbio. Nesse sentido, a atual política monetária brasileira foi conservadora em consonância com a situação fiscal do pais, a composição da divida pública, os choques externos e a percepção dos investidores sobre os fundamentos econômicos da economia. Consideradas a atual relação divida/PIB e a taxa de juros real da divida pública, o quadro macroeconômico do pais ainda é bastante instável. Os niveis factiveis de superavit fiscal para os próximos anos não parecem suficientes para evitar que a ocorrência de um novo choque externo ou interno aumente ainda mais a relação divida pública/PIB, podendo resultar em uma trajetória explosiva. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 40 Simulações indicam que caso a taxa de juros real passe para 11% em 2003, e para 8% no ano seguinte, permanecendo nesse patamar ate 2006, a relação dívida /PIB, mesmo que a economia retome sua taxa de crescimento para 3,5% ao ano a partir de 2003, cairá apenas cerca de três . e f pontos percentuais ao fim desse periodo. Dessa forma, qualquer choque externo que force momentaneamente uma elevação da taxa de juros ou leve a uma desvalorização cambial pode resultar em novo aumento significativo da relação divida/PIB. Em contrapartida, uma redução do risco-Brasil para oitocentos pontos, cerca do dobro do risco-México, permitiria, mantidos os atuais níveis de superávit primário, uma rápida redução da relação divida/PIB. Precisamente por isso, torna-se importante a realização de reformas microeconômicas que melhorem as expectativas de crescimento econômico, o que, por sua vez, deve diminuir a incerteza com relação ao futuro da economia brasileira e, conse- quentemente, o risco-Brasil. De forma analoga, o aumento da integração com o comércio mundial pode reduzir a volatilidade da economia brasileira em face de choques externos, fortalecendo as condições necessárias para a diminuição desses indicadores. As sugestões diretrizes de uma política macroeconômica favorável ao crescimento são as seguintes: mo [4 . . 4 . - mo . a) manutenção do superávit primário ao menos enquanto não houver redução substancial e duradoura do risco-Brasil. b) institucionalização das regras e dos procedimentos da política fiscal, a fim de reduzir a incerteza sobre a condução da politica macroeconômica e, portanto, o risco-Brasil. c) redução dos gastos correntes e aumento da poupança pública, de modo a retomar o investimento estatal, em especial em infra-estrutura basica. d) manutenção do regime de câmbio flutuante, para que a taxa cambial possa se acomodar A . ço. r no nivel real, produzindo um déficit sustentável nas contas correntes. e) redução do passivo mobiliário do governo com correção cambial, 5 Previdência e gestão do Estado O gasto do Estado brasileiro tem aumentado continuamente nas últimas decadas, chegando hoje a cerca de 38% da renda nacional, bem superior aos gastos dos paises com renda por habitante semelhante à brasileira. Além do custo com a divida do governo, parte desse aumento esta relacionada com a elevação do volume de recursos destinados à area social, visando a corrigir falhas antigas da ação pública no Brasil. A gestão do Estado no Brasil, entretanto, apresenta ineficiências que reduzem o alcance do gasto público. A avaliação das políticas públicas é, em geral, feita por meio da mensuração da oferta de bens e serviços providos pelo Estado, mas não em razão de sua influência no A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 41 bem-estar social. Mensura-se, muitas vezes, a quantidade de bens públicos produzidos, mas não a melhoria das condições de vida da população. Essa forma de mensurar a produção de bens e serviços públicos tem como consequência a dificuldade de redirecionar os gastos para os programas de maior eficacia social. Alem disso, não ha uma análise sistemática dos programas, em particular, da proporção de recursos gastos com atividades-meio em relação às atividades-fim da ação pública. Não ha mesmo uma sistematização de critérios de avaliação da gestão das políticas públicas que permita controle periódico. Deve-se destacar, como sera discutido na seção seguinte, que o volume dos gastos públicos em políticas sociais no Brasil parece ser suficiente para resolver grande número dos problemas associados à pobreza. Sua persistência parece decorrer essencialmente do fato de que boa parte dos recursos não atinge os objetivos estabelecidos. Um dos fatores responsáveis pelo aumento do gasto público nas últimas decadas é a Previdência Social. A Previdência é um importante ativo do pais e sua contribuição para a redução da pobreza é extremamente significativa, diminuindo o número de pessoas abaixo da linha de pobreza em mais de 12 pontos percentuais. Em particular, a aposentadoria rural bene- ficiou mais de seis milhões de pessoas e alterou de maneira significativa a dinâmica econômica de inúmeras comunidades no interior do país. Na discussão sobre a tributação e seus efeitos na informalidade, discutimos um modo de financiamento da Previdência Social que minimiza esses efeitos. Abordaremos agora outras mudanças. A reforma de 1998-2000 reforçou o sistema previdenciário, ao criar mecanismos que buscam preservar seu equilibrio financeiro no médio e longo prazo. Em particular, o mecanismo do fator previdenciário e a introdução de fórmulas de calculo que levam em conta um maior número de anos de contribuição, a idade e a expectativa de vida no momento da aposentadoria permitem, quando necessario, ajustes graduais dos benefícios que garantam a preservação do poder de compra de cada aposentadoria outorgada. Um elemento fundamental da discussão corrente é o estabelecimento de contas individuais. É preciso distinguir as contas individuais da capitalização da Previdência. A capitalização visa a aumentar a poupança interna e a resolver os problemas de redistribuição entre as gerações. As contas individuais, por sua vez, podem melhorar os incentivos — por exemplo, incentivos à postergação da aposentadoria. Embora as contas individuais tenham a grande vantagem de associar de maneira transparente contribuição e benefício, é importante lembrar que vários dos incentivos que elas geram podem ser reproduzidos no atual sistema de pay as you go. Dois aspectos devem ser ressaltados na transição para um sistema de contas individuais. O primeiro é contábil (esqueleto). O governo já deve a aposentadoria para os que ainda trabalham e o estabelecimento de contas individuais exigiria a emissão de ativos, por exemplo titulos de longo prazo ou participação nas companhias estatais, que correspondessem à sua A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 42 divida implicita. Além disso, as contribuições dos trabalhadores não poderiam ser utilizadas para pagar os aposentados, pois migrariam para as contas individuais. Em compensação, o governo não adquiriria obrigações de pagamento para os futuros aposentados. Dessa forma, as contas individuais não criam novos gastos para o governo, apenas explicitam as obrigações ja existentes. As contas individuais, contudo, criam o seguinte problema. Os trabalhadores que contribuem atualmente pagam a aposentadoria dos que ja se aposentaram, a fim de, em troca, receber sua aposentadoria no futuro. Sua taxa de retorno será relativamente baixa, a menos que as atuais hipóteses demográficas e de crescimento de renda se provem muito pessimistas. Com o sistema de contas individuais, essa taxação se torna inviável. Assim, a mudança para o sistema de contas individuais transfere renda para a geração que contribui no presente, tendo o Estado de, necessariamente, pagar a diferença. O reconhecimento dessa diferença € apenas uma parcela dos 6% do PIB ao ano que são frequentemente mencionados como o custo da transição para um regime de contas individuais, sendo o resto um esqueleto. Dado o atual estado de nossas finanças públicas, porem, não se pode enfrentar nem mesmo essa parcela. Se o sistema em vigor permanecer, por volta de 2020, teremos de escolher entre aumentar a idade de aposentadoria, cortar beneficios, elevar as contribuições ou financiar ainda mais o programa com impostos cobrados de toda a sociedade. A mudança para um plano de capitalização taxa a sociedade como um todo, o que é melhor, porém dificil de ser realizado de imediato em face do atual estado das contas públicas. O fortalecimento do regime de previdência do servidor público federal (Regime Jurídico Único, RJU), que hoje gera um deficit de quase R$ 30 bilhões por ano (2,5% do PIB), é o segundo aspecto a merecer atenção. O deficit gerado anualmente pelo RJU equivale ao volu- me de transferências diretas para as camadas mais pobres da população (Bolsa Escola, Bolsa Alimentação, Aposentadoria Rural etc.). Suas principais razões são a migração dos antigos contratados do governo permitida pela Constituição de 1988 e o fato de a aposentadoria corresponder ao último salário. No RJU, o valor médio por aposentadoria é de R$ 2.000,00 por mês, chegando a R$ 6.000,00 no Poder Judiciário. No regime em vigor, na verdade, as aposentadorias são mais altas que o salario liquido dos ativos, porque, com o início da aposentadoria, cessa o pagamento das contribuições. Há uma emenda no Congresso que permite que essas contribuições continuem a ser cobradas no caso dos salários mais altos, o que estabeleceria uma verdadeira isonomia entre ativos e inativos. Esse mecanismo € vantajoso porque permaneceria em operação mesmo que o número de funcionários estatutários ativos continue a diminuir, como tem ocorrido nos últimos oito anos, e ajudaria a diminuir o déficit do regime. Mesmo com essas mudanças, o regime de aposentadoria pública precisa de reformas mais amplas, que se beneficiem da reforma da Administração votada pelo Congresso; por exemplo, A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 43 o fato de que apenas carreiras essenciais ao Estado requererão funcionários estatutários, passando as demais a ser supridas por empregados públicos, cujo regime previdenciário sera o do INSS. Uma reforma da Previdência deve englobar, portanto, as seguintes sugestões: a) a unificação, tanto quanto possivel e sem ferir os direitos adquiridos, dos sistemas previdenciários para os empregados do setor público e privado. Numa primeira etapa, por meio da contratação de funcionários públicos pelo regime do INSS, exceto os de carreiras essenciais ao Estado. Para estes novos estatutários, o governo complementaria o sistema unificado com contas individuais capitalizadas. Eventualmente, o sistema seria facultado aos funcionários ativos antes da reforma. b)a médio prazo, a transição para um sistema unificado que envolva, ao menos parcial- mente, contas individuais e garanta uma renda minima para os aposentados mais pobres. c) isonomia entre funcionários públicos ativos e inativos, garantindo-se, ao menos, que o valor da aposentadoria não ultrapasse o salário recebido pelo funcionário em atividade. No que se refere à gestão do Estado, as principais sugestões são: a) Reforma administrativa com a criação de critérios de desempenho das políticas públicas e realização de avaliações periódicas dos programas em curso. Deve-se evitar, em par- ticular, a mensuração das políticas públicas por critérios de oferta adicionada, substituindo-os pela mensuração de seus impactos sociais e econômicos. b) Revisão e uniformização dos processos de serviços na administração pública, visando N . r . b - tanto à melhora dos serviços públicos quanto à redução das despesas em gastos correntes. c) Diminuição dos gastos correntes a fim de permitir o aumento da poupança pública, a retomada do investimento do governo, em especial em infra-estrutura basica, e a melhoria da educação pública. 6 Diretrizes para o desenho de uma politica social efetiva A pobreza em um pais se encontra estreitamente ligada ao volume agregado de recursos disponiveis e à forma como esses recursos são distribuídos. Para que a pobreza seja reduzida de forma significativa, é necessário que o volume de recursos cresça, mas, principalmente, que o grau de desigualdade existente seja reduzido. Enquanto o resultado primordial de uma política econômica efetiva deve ser um processo de crescimento vigoroso e sustentado, a principal contribuição de uma politica social eficaz é a redução da desigualdade. Como se viu, a desigualdade no Brasil permanece essencialmente a mesma ha pelo menos três decadas. A despeito de sua manutenção, o grau de pobreza recuou, particularmente na segunda metade da decada de 1990, em razão de três fatores determinantes: a) crescimento A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 44 econômico, b) expansão dos beneficios da Previdência e da assistência social e c) queda nos preços dos alimentos. Nos últimos anos, ocorreu um fenômeno ja observado em décadas anteriores: a redução da pobreza sem diminuição da desigualdade. A redução da desigualdade, um dos principais instrumentos para o combate da pobreza, ainda é pouco utilizada. Em outras palavras, a pobreza poderia ter declinado muito mais se uma redução no grau de desigualdade, ainda que modesta, tivesse sido obtida. Embora o conjunto completo de causas que impediram a política social brasileira de reduzir a desigualdade ao longo da última década permaneça controverso, parece haver consenso sobre alguns pontos: sabemos de dois fatores que não causaram e outros dois que favoreceram a baixa eficácia da política social nesse periodo. A falta de efetividade da politica social brasileira não advem da ausência de recursos. A cada ano, o país aplica cerca de 150 bilhões de reais nessa area. Tampouco ha mediocridade do leque de programas utilizados. Na verdade, conforme reconhecimento inclusive internacional, esse leque é amplo, moderno e, em áreas importantes, extremamente inovador. Em contrapartida, a responsabilidade pela baixa eficacia das políticas sociais no pais pode ser atribuida à seguinte dupla de fatores. O primeiro é a ma-focalização dos gastos sociais. Estima-se que menos de /4 do gasto social brasileiro beneficie efetivamente a população pobre. É óbvio que se os recursos aplicados não se dirigem prioritariamente aos mais pobres, dificilmente o esforço empregado terá grande incidência sobre o grau de desigualdade. De fato, as evidências sobre a ma-focalização dos gastos sociais são extremamente amplas, e têm um importante viés etário: a atenção dedicada à população idosa é muito superior aquela destinada à população mais jovem. Consequentemente, embora a pobreza entre os idosos seja maior que entre as crianças na ausência de qualquer transferência governamental, após a conclusão dessas transferências, a pobreza entre os idosos passa a ser inferior à metade da verificada entre as crianças (Gráfico 10). Basta comparar, por exemplo, o beneficio mensal por criança de programas como o Bolsa-Escola (R$ 15,00) com o beneficio da previdência rural por idoso (R$ 200,00), ou o volume anual de recursos destinados aos dois programas: cerca de R$ 1,5 bilhão para o Bolsa-Escola e R$15 bilhões para a previdência rural. A grande atenção concedida aos trabalhadores do setor formal em detrimento daqueles presentes no setor informal é outro viés reconhecidamente presente na politica social brasileira. Apenas uma pequena parcela dos recursos de programas como Seguro-desemprego, Abono Salarial e Programa de Alimentação do Trabalhador atingem de fato os segmentos mais pobres da população (Barros, Foguel & Coersul 2000). O fato de boa parte da política social brasileira estar voltada para o segmento formal do mercado de trabalho ilustra o favorecimento da classe media, em detrimento das camadas mais pobres. Um dos grandes exemplos dessa tendência é a universidade pública, cujos beneficios diretos para os mais pobres são extre- mamente limitados e para os não-pobres, evidentes. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 45 Gráfico 10 Grau de pobreza ao longo do ciclo de vida 80 Porcentagem de pobres Idade (em anos) [Todas as rendas excluindo aposentadoria e pensão pública ETodas as rendas Fonte: Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) de 1999. A ausência de um sistema nacional de avaliação das políticas sociais é o segundo fator responsável pela ineficiência da política social praticada no Brasil nas últimas décadas. Sem um sistema de cadastramento e monitoramento e a avaliação da influência das diferentes políticas sociais, € impossivel identificar quais programas e ações são mais eficazes. De fato, a alocação eficiente dos discursos disponíveis é inviavel sem uma avaliação continua da efetividade relativa dos programas existentes. É lícito concluir, portanto, que o desenho de uma politica social efetiva para o Brasil depende pouco da inclusão de programas novos ou do aumento nos gastos sociais. O desafio atual é antes garantir que os segmentos mais pobres tenham prioridade nos programas e que os recursos fluam dos programas menos eficazes para aqueles que comprovem ser mais eficientes na redução tanto da pobreza quanto da desigualdade. Apresentamos a seguir alguns pontos centrais para o desenho de uma política social efetiva, esboçando como deveriam ser tratados no caso brasileiro. Sendo a pobreza, em última instância, determinada pela disponibilidade de recursos e pela desigualdade com que são repartidos, ela pode ser combatida não só com o crescimento, como tambem com a redução da desigualdade de renda. a) agir diretamente sobre a desigualdade Em paises pobres e com menor grau de desigualdade, o crescimento desponta como o principal, senão único, meio capaz de efetivamente reduzir a pobreza. Já em países como o A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 46 Brasil, com renda per capita relativamente elevada e cuja pobreza deriva fundamentalmente do elevado grau de desigualdade, o crescimento se torna, isoladamente, um instrumento ineficaz de combate à pobreza. No caso brasileiro, uma estratégia baseada apenas no crescimento não conseguiria nem mesmo reduzir em uma década a extrema pobreza à metade. Tal meta demandaria um crescimento anual de 4,5% na renda per capita. Com o auxilio de dois pontos percentuais de redução no grau de desigualdade (gini), todavia, o crescimento requerido para eliminar metade da pobreza brasileira no mesmo periodo passa a ser de apenas 2,5% ao ano. Em conjunto, esses números revelam que o declínio da pobreza à metade no pais ao longo da próxima decada é viavel, sendo indispensável, contudo, contar com alguma redução na desigualdade. b) politicas estruturais e compensatórias A redução das desigualdades sociais pode ser alcançada por resultados tanto diretos quanto indiretos das politicas públicas. Ha, essencialmente, dois tipos de politica que visam diretamente à redução no grau de desigualdade. De um lado, politicas estruturais que objetivam expandir a capacidade de geração de renda dos pobres por meio do aumento de sua produ- tividade ou da garantia de uma maior valorização daquilo que produzem. Para elevar a produtividade, deve-se facilitar o acesso desses grupos a ativos como maior escolaridade e maior acesso a capital físico e à terra (por exemplo, crédito produtivo popular e reforma agrária), e para valorizar os ativos de que dispõem, favorecer o acesso aos mercados de trabalho, produtos e insumos. Do outro, políticas compensatórias com base em transferências diretas que aliviam a pobreza sem transformar a capacidade de geração de renda (por exemplo, o Programa de Aposentadoria Rural). Em princípio, é sempre melhor combater a pobreza de forma estrutural que a partir de políticas compensatórias. No caso brasileiro, contudo, considerados o nivel relativamente elevado de renda e o altissimo grau de desigualdade, programas compensatórios abrangentes têm de ser parte importante da politica social e, por conseguinte, dos gastos do pais nessa area. Por fim, a redução das desigualdades também pode ocorrer como efeito indireto de intervenções que afetam todo o sistema econômico, produzindo eventualmente impactos sobre a desigualdade social e, portanto, sobre a pobreza. Esse é o caso, por exemplo, de mudanças nas políticas macroeconômicas. c) enfatizar transferências diretas Um importante dilema no desenho de políticas compensatórias decorre do fato de que sua implementação pode ocorrer de duas formas. De um lado, sem qualquer despesa gover- namental adicional, é possível regulamentar preços, como no caso do salário minimo. Do outro, realizar transferências diretas de renda sem interferência imediata sobre o sistema de A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 47 preços. Em geral, a regulamentação de preços € ineficiente. De fato, esse tipo de regula- mentação pode gerar ineficiência econômica e prejudicar os pobres em vez de ajudá-los. As políticas de transferências diretas, por sua vez, possuem a desvantagem de aumentar o gasto público e, em geral, necessitam de um aumento da tributação. Considerada a alta capacidade de taxação e arrecadação do governo brasileiro, as políticas compensatórias devem se basear mais em transferências diretas que em intervenções no sistema de preços. d) politicas que aumentem a capacidade produtiva dos mais pobres As ações de natureza estrutural pretendem aumentar a capacidade de geração de renda dos mais pobres, com o objetivo de retirá-los de forma definitiva da condição de pobreza. Esse objetivo pode ser alcançado de três formas. Em primeiro lugar, elevando a dotação de fatores de produção dos pobres. Em segundo, subindo seu salário por meio de incrementos na produtividade, e, em terceiro, aumentando sua remuneração a partir de políticas que atuem nos mercados, em particular as que influenciam os preços dos fatores de produção. Maiores investimentos em educação e qualificação dos trabalhadores pobres levam à acumulação de capital humano. O capital acumulado em determinados segmentos eleva sua produtividade, e dai sua renda, reduzindo igualmente a pobreza. As evidências indicam que no Brasil a baixa produtividade do trabalho resulta mais da pouca qualificação dos trabalhadores que da baixa qualidade dos empregos existentes. A política social brasileira deve, portanto, continuar investindo na escolaridade geral da população brasileira e na qualificação da força de trabalho, com atenção especial à educação de adultos. e) politicas sociais e crescimento econômico O crescimento da economia, impulsionado pela entrada de capitais produtivos no pais, investimentos domésticos e avanços tecnológicos nos processos produtivos em geral melhoram a qualidade dos empregos. Disso decorre um aumento na produtividade dos trabalhadores, que produz influência positiva sobre sua renda e reduz a pobreza. Nesse sentido, investir nos mais pobres serve como meio de prepara-los para aproveitar melhor o processo de crescimento. O motor do crescimento está relacionado à capacidade do sistema econômico de atrair investimentos, o que traz melhorias, por exemplo, na qualidade dos empregos, via inovações tecnológicas. Para alcançar um sistema econômico que atraia esse tipo de gastos sociais, são fundamentais políticas macroeconômicas estáveis e eficientes, e o cumprimento das tradicionais atribuições de oferta de bens públicos por parte do Estado. Politicas direcionadas ao aumento da capacidade de geração de renda das classes sociais mais pobres, à ampliação em programas universais da provisão de bens públicos e a uma eficiente regulação da economia têm, por sua vez, influência no crescimento econômico. São A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 48 tais políticas que permitem aos setores mais pobres se beneficiar de um crescimento econômico originado nos segmentos mais modernos da economia. Além disso, elevação no nivel de escolaridade dos grupos mais pobres, na oferta de credito e na oferta de bens públicos permitem que esses grupos expandam a produção de pequeno porte, nas áreas tanto rurais quanto urbanas. O apoio à produção popular, garantindo melhores condições de comercialização dos produtos e maior acesso a mercados como o de crédito, é alternativa importante às transferências diretas de renda. Embora as intervenções reguladoras no mercado possam ter efeito sobre a pobreza, é fundamental implementar políticas que visem a um melhor acesso dos pobres aos mercados de trabalho, produtos e insumos. )) utilização do setor privado para a provisão de serviços Toda politica social tem como principio garantir aos mais pobres o acesso a serviços sociais básicos. Resta, entretanto, determinar qual deve ser a participação dos setores público f e privado na produção desses serviços. E necessário, pois, decidir se a produção dos serviços públicos deve ser realizada exclusivamente pelo setor público ou se é recomendável que o . . . . “A . 4 End . IA . setor privado participe do processo, trazendo maior eficiência à produção. Em princípio, os mo E . . . . . pobres não devem ser excluidos do acesso aos serviços sociais produzidos pelo setor privado. O papel da sociedade de subsidiar o acesso dos que não possuem recursos a serviços sociais básicos não significa que o Estado seja obrigatoriamente o único produtor desses serviços. 9) descentralização As dificuldades da gestão centralizada de programas sociais é outro aspecto ligado à eficiência da politica social. É importante estimular a participação local como forma de aumentar tanto a eficiência quanto a flexibilidade no desenho das políticas sociais. A transferência de poder decisório para instâncias menos centralizadas não pode, contudo, prescindir do monitoramento e da assistência técnica do órgão centralizador. É evidente que as comunidades sabem o que é melhor para elas, porém a implementação do que é “melhor” muitas vezes requer certo grau de conhecimento técnico. E importante ainda distinguir descentralização e abandono. Embora pareça indispensável que a gestão da politica social brasileira seja descentralizada, é fundamental que os agentes locais recebam suporte tecnico continuo dos organismos centrais e que um sistema de avaliação do desempenho local seja desenvolvido e utilizado. h) unificação do orçamento social da União e coordenação das políticas sociais Atualmente, os programas sociais estão subdivididos em diversos ministérios e órgãos do governo federal. Mesmo na previdência social estão incluídos programas de assistência, como o de aposentadoria rural. A unificação de todos os programas, com a criação de um orçamento A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 49 social unificado, permitiria, dadas suas inevitáveis complementaridades, não só uma melhor coordenação das políticas adotadas, como também a proposição de critérios de avaliação de resultados e identificação de problemas tanto de agência quanto de focalização e impactos sociais. Em resumo, as políticas sociais devem ser avaliadas não pelos recursos gastos ou pela oferta de bens públicos gerada, mas sim por sua influência nos indicadores sociais. 7 Políticas de controle da criminalidade As pesquisas de vitimização, isto é, pesquisas domiciliares que recolhem informações junto às vitimas, oferecem dados importantes para o desenho de politicas públicas de prevenção à criminalidade. Com base nesses dados, é possível estimar a prevalência dos vários tipos de crime de forma mais acurada que a permitida pelos dados do sistema de administração da justiça. Os resultados de testes empíricos, com base em quatro pesquisas de vitimização (duas para São Paulo e duas para Rio de Janeiro), indicam que, nas duas maiores areas metropolitanas do Brasil, ha distribuição relativamente equitativa do risco entre os diferentes ...3 CNA . .- - ... A . segmentos sociais”. Individuos com maior exposição — em função de atividade econômica e . . mm Fa . . dd . mo . . Ed participação política — apresentaram riscos maiores de vitimização. Por sua vez, individuos com baixa escolaridade têm maiores riscos de vitimização sem motivação econômica, ou seja, são menores seus riscos de vitimização economicamente motivada (Carneiro 2000). Há também evidências de que o alcool aumenta a probabilidade de vitimização. Fá E necessário, portanto, incorporar ao repertório de iniciativas possiveis nessa area politicas que considerem os padrões de mobilidade dos individuos no espaço urbano. Conhecer os habitos de lazer, os horários de trabalho, o consumo e a disponibilidade de alcool, entre outras condutas da população, pode ser fundamental para reduzir localmente a incidência de certos tipos de crime em contextos urbanos. Evidentemente, a intervenção das agências do sistema de administração da justiça em diferentes níveis governamentais e dos sistemas de . Fr . . IA . . . me . planejamento urbano e de saúde, secundariamente, sofreriam uma série de limitações legais, políticas e mesmo culturais (caso pretendessem, por exemplo, alterar a oferta de álcool em lugares públicos), devendo, para ser eficientes, contar com um diagnóstico específico para , , , cada área urbana e cada tipo de crime. Ha problemas institucionais que atingem diretamente a eficiência das agências públicas na area de segurança. A existência de duas policias (civil e militar) tem sido constantemente * O conceito de estilo de vida no estudo da vitimização foi utilizado de forma sistemática pela primeira vez por Hindelang, Gottfredson e Garofalo (1978). Cohen, Kluegel e Land (1981) introduziram novos conceitos no modelo original, desenvolvendo o que denominaram modelo de oportunidades [opportunity model). A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 50 citada como um sério entrave à eficiência das iniciativas de controle do crime. Embora seja possivel constatar convergência na opinião dos especialistas quanto à necessidade de unificação das policias, melhorias operacionais significativas podem ser obtidas com a adoção de medidas que favoreçam a coordenação entre ambas. São Paulo, Minas Gerais e Rio Grande do Sul adotaram medidas simples que reduziram o conflito entre as corporações policiais e aumentaram a eficiência do sistema, como a adoção de uma mesma base geográfica para as atividades de policiamento civil e militar e uma melhor alocação dos recursos disponiveis. Isso permitiu, por exemplo, a definição de metas de redução da criminalidade em uma determinada área que devem ser buscadas conjuntamente. Alem disso, uma agenda política nacional de controle da criminalidade deve privilegiar o problema do mercado ilegal de armas. O relatório Global Report on Crime and Justice, da ONU, publicado em 1999, relaciona de forma direta a expansão do mercado ilegal de drogas com o aumento generalizado da criminalidade violenta. A participação do Brasil no tráfico interna- cional de armas é um tema sobre o qual dispomos de avaliações ainda muito precarias. Estudos recentes realizados no Rio de Janeiro indicam a existência de conexões entre os mercados ilegais e a indústria brasileira de armas. Ha ao menos três ações prioritárias que devem ser mencionadas. A primeira diz respeito a necessidade de ampliar a capacidade operacional das agências encarregadas da fiscalização dos mercados legal e ilegal de armas de fogo, com a adoção de medidas que melhorem a capacidade de investigação dos órgãos federais na área e permitam o desenvolvimento de bancos de dados com os quais se torne possível estabelecer o trajeto das armas, desde sua produção até os atos criminais em que foram utilizadas. Em segundo lugar, é preciso adotar medidas legislativas que restrinjam ao máximo o comércio legal de armas de fogo. Por fim, fazem-se necessários esforços legislativo e de regulação sobre o mercado de segurança privada e sobre o exercicio de outras atividades profissionais por policiais. Há lacunas na legislação e falhas nas atividades de regulação que permitem a transferência de armas de fogo produzidas e comercializadas legalmente no Brasil e no exte- rior para atividades criminais. Como vimos na seção de diagnóstico sobre a criminalidade, a adoção de políticas públicas que previnam a entrada dos jovens na criminalidade é um aspecto importante do combate à violência. Entre as diversas políticas que podem ser adotadas nesse sentido, estão: a) a extensão do Programa Bolsa Escola para adolescentes, sobretudo nos grandes centros urbanos. b)a melhoria dos serviços públicos nessas regiões, em particular a educação de ensino médio. c) a especial atenção aos grupos de jovens desocupados nas comunidades carentes dos grandes centros urbanos. A Agenda Perdida: diagnósticos e propostas para a retomada do crescimento com maior justiça social 51 No que se refere às políticas de segurança pública, destacam-se: a) a obrigatoriedade de disponibilização, por parte dos estados, das bases de dados sobre a criminalidade, a fim de a um só tempo evitar a manipulação dessas informações e tornar possivel tanto a identificação de áreas críticas quanto um maior envolvimento da sociedade civil na discussão e na formulação de propostas para o combate à criminalidade; b)a construção de mapas de ocorrência de atividades criminosas, a fim de permitir a ação policial preventiva e o controle público da atividade policial; c) a unificação das áreas de atuação das polícias civil e militar e a coordenação dos procedimentos de segurança visando a uma maior eficiência de suas ações; d)o maior controle do comércio de armas de fogo, incluindo a elaboração de cadastros nacionais, de modo que se torne possivel estabelecer o trajeto das armas desde sua fabricação até o ato criminoso; e) o incremento das restrições ao comércio de armas com o auxílio do cadastro nacional de compradores; £) o maior controle do mercado de segurança privada e do exercício de outras atividades profissionais por policiais; g) o aumento da punição dos crimes com ameaça à vida e do porte ilegal de armas. 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